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| 1 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS2 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSDireção editorial: Luciana de Castro BastosDiagramação e Capa: Daniel Carvalho e Igor CarvalhoRevisão: Do autor A regra ortográfica usada foi prerrogativa do autor.Todos os livros publicados pela Expert Editora Digital estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 BY-SA. https://br.creativecommons.org/‘’A prerrogativa da licença creative commons 4.0, referencias, bem como a obra, são de responsabilidade exclusiva do autor’’Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)SANTOS, IGOR MORAESS237RA RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA: Filosofia, eloquência e tradição no pensamento político-jurídico de Marco Túlio Cícero Igor Moraes Santos - Editora Expert - 2021.ISBN: 978-65-89904-14-4 1. Direito – Filosofia 2. Cícero 3. Direito e política 4. Eloquência 5. Roma – História I.Título CDU(1976) 340.12Este livro foi selecionado para publicação pelo Programa de Pós-Graduação em Direitoda UFMG com recursos do Programa de Excelência Acadêmica (PROEX) da CAPES.Pedidos dessa obra: experteditora.com.br contato@editoraexpert.com.br A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSDr. Eduardo Goulart Pimenta Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG e PUC/MG Dr. Rodrigo Almeida Magalhães Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG e PUC/MG Dr. João Bosco Leopoldino da Fonseca Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG Dr. Marcelo Andrade Féres Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSIGOR MORAES SANTOS A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIAFilosofia, eloquência e tradição no pensamento político-jurídico de Marco Túlio Cícero A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS Para Maria Aparecida Silva Moraes,Por todos os seus abraços, com saudade.Do seu broto. A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS est profecto animi medicina, philosophia (Cícero. Tusculanae disputationes III, 6)arbores seret diligens agricola, quarum aspiciet bacam ipse numquam(Cícero. Tusculanae disputationes I, 31)si hortum in bibliotheca habes, deerit nihil(Cícero. Ad familiares IX, 4) A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSAGRADECIMENTOSEste livro originou-se da dissertação de mestrado defendida em fevereiro de 2018, no âmbito da Linha de Pesquisa 4 – Estado, Razão e História, área de estudo Filosofia do Estado e Cultura Jurídica, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Por isso, agradeço ao povo brasileiro, à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e ao PPGD-UFMG a oportunidade de desenvolver a pesquisa, com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior – CAPES.Em especial, agradeço à minha orientadora, Profa. Dra. Karine Salgado, o exercício do papel de conselheira e de norte na minha jornada pelas sendas da pesquisa e da docência, com firmeza e afabilidade, aceitando arriscar-se comigo na beleza instigante dos clássicos. No ensejo, agradeço também aos professores doutores Joaquim Carlos Salgado (UFMG) e Sidney Calheiros de Lima (USP) por integrarem a banca avaliadora e formularem sugestões construtivas ao aprimoramento do trabalho.O processo de pesquisa e redação contou com a colaboração gentil e zelosa de Maria Laura Tolentino Marques Gontijo Couto, Isabela Antônia Rodrigues de Almeida e Alexia Alvim Machado, a quem aporto a mais sincera gratidão pela disponibilidade e presteza. Também ecoam no texto a amizade filosófica e o auxílio constante vida afora dos parceiros de mestrado Renan Victor Boy Bacelar e Lucas Carmargos Bizotto Amorim, assim como as presenças marcantes em minha trajetória dos professores doutores Philippe Oliveira de Almeida, José Luiz Borges Horta e Marcella Furtado de Magalhães Gomes. Do mesmo modo, registro a importância do diálogo fecundo com os colegas Raul Salvador Blasi Veyl, Maria Gabriela Machado Prado, Rodrigo Marzano Antunes Miranda, Ana Guerra Ribeiro de Oliveira, Vitor Hugo Diniz Oliveira, Carlos Emanuel Florêncio de Melo, João Protásio Farias Domingues de Vargas e Cezar Cardoso de Souza Neto. Agradeço aos meus pais, José Geraldo e Márcia, todo carinho e apoio desde os meus primeiros passos, constituindo esteios das minhas conquistas e dos meus sonhos, bem como à minha irmã, Isabelle, com seu companheirismo e paciência, sempre pronta a conceder amparo fraternal. A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSE ao saudoso Estopa, nossa alegria canina. Sou também eternamente grato aos meus avós, Maria Aparecida (in memoriam) e Helvécio, meus maiores, exemplos de vida e grandes inspirações intelectuais mesmo nos gestos mais singelos. Agradeço, ainda, aos amigos Isadora, Guilherme, Thiago Morais, Diogo, Bernardo, João Gustavo, Thiago Diniz e Jéssica todo afeto, risos e solidariedade, nos bons momentos e nos tempos difíceis: sine amicitia vitam esse nullam.Por fim, agradeço à Isabela o desvelar de uma nova face do amor. A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSPREFÁCIOLidar com os clássicos é uma tarefa invulgar. Numa cultura imediatista e superficial, os clássicos se colocam num horizonte longínquo, como estátuas de deuses que testemunham nossa caminhada e nos guardam, como autoridades que nos inspiram, mesmo quando a ignorância sobre eles se faz regra geral. São clássicos e isso deveria bastar a eles e a nós. Por que tornar a eles? Por que tentar desvendar um universo que se separa de nós por um interstício milenar? Sobre nossa realidade eles teriam muito pouco a dizer. Viveram em outro tempo e o tempo é um juiz implacável que põe cada qual em seu devido lugar, estabelecendo limites rígidos que não podem ser ultrapassados. Assim, lá ficam como clássicos que merecem nossa veneração enquanto sábios de um tempo que não nos pertence. Por outro lado, cá ficamos com nosso tempo que requer agilidade, utilidade, o que aparentemente eles não têm a oferecer.Os clássicos parecem encontrar acolhida apenas naqueles que buscam erudição, sobretudo naqueles que têm gosto pelo saber simplesmente, sem qualquer pretensão outra. Triste da cultura que pensa assim. Triste de nós que caminhamos abraçados a esta convicção.É neste horizonte de pragmatismo e imediatismo que eventualmente brilham esforços que parecem se volver à direção oposta. Como flores no deserto, apanágios de esperança de um tempo mais pujante e frutífero para nossa cultura, surgem aqui e ali esforços de diálogo com os clássicos. Tímidos, porém firmes sinais do quanto os clássicos têm a oferecer ao enfrentamento de nossos problemas contemporâneos, pois não são estranhos a nós, não pertencem a uma realidade extramundana. Os clássicos são parte de nossa cultura, são parte de nós e não há interstício temporal que possa negar este fato. Entretanto, isso, paradoxalmente, representa menos facilidade que desafios.Adentrar o universo da Antiguidade, ou de qualquer outro tempo histórico que não o nosso, é um desafio que exige esforços incomensuráveis, sob pena de não se compreendê-lo adequadamente. Mais do que simplesmente ler os clássicos, é preciso caminhar pelo contexto que os produziu, pela cultura que os formou, pela história que viveram, enfim, é necessário A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOStransportar-se a este universo. Do contrário, alcançamos apenas leituras imediatistas e superficiais a engrossar o coro da convicção do distanciamento e da impertinência de reflexões passadas para a construção do futuro. Enfim, tratar dos clássicos é uma,aventura desafiadora.Neste volume, Igor Moraes Santos aceita o desafio ao eleger Cícero como objeto de sua análise, abraçando todas as exigências que uma empreitada desta monta pode comportar. Cícero está em um momento privilegiado da Antiguidade, beneficiando-se de toda a riqueza e potência que a filosofia grega alcançou e do contexto romano, cujas práticas políticas e jurídicas só fazem enriquecer sua experiência histórica. É, ainda, favorecido pela inteligência perspicaz que lhe permitiu perceber a distância entre os modelos teóricos gregos e sua própria realidade.De posse destas convicções, o autor do presente livro empreende uma análise da obra do Arpinata, mais especificamente do seu pensamento político, levando em consideração elementos essenciais que uma abordagem apropriada do tema requer. Assim, não descura dos elementos jurídicos e políticos, centrais para a sua investigação, mas igualmente avalia o papel da eloquência e sua função eminentemente ética na obra de Cícero. Entretanto, é preciso dizer que uma articulação desta natureza só é bem sucedida quando se adentra a cultura romana e se compreende as dimensões e significados destes elementos nela. Este é justamente o convite que a presente obra nos faz.Assim, a partir do desejo inalcançável, mas necessário, de tudo esgotar, de tudo vasculhar, a pesquisa que resultou neste livro alarga seus horizontes com o único intuito de bem cuidar de seu objeto. Nessa exploração que levanta o olhar para além daquilo que o microscópio pode oferecer, o autor encontra o entorno e, com ele, um elemento igualmente necessário, embora eventualmente descurado, que descortinará novas possibilidades de leitura do tema: a história.Ora, entender o significado entesourado na palavra história na Antiguidade é tarefa por demais ousada, embora seja justamente neste esforço e cuidado que resida uma chave de interpretação inovadora para o problema aqui proposto. A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSAssim, floresce a leitura de Cícero que articula os elementos próprios de seu pensamento. A história, que no direito tem papel fundamental para o valor normativo dos costumes, sem fechar as portas para a criatividade, também encontrará lugar na política, para a qual sua principal razão de ser é a própria ação, sem desconsiderar, ainda, o orador, que vê nela um instrumento de aprimoramento moral.Deste modo, Igor Moraes Santos enfrenta a questão da república em Cícero, objeto de vastos estudos, como as próprias referências deste volume mostram, num esforço de ir além da simples discussão entre a identificação da república do Arpinata com a que lhe era presente ou a passada. A compreensão da forma peculiar com que a história ingressa no pensamento de Cícero oferece novas perspectivas de leitura do tema. Assim, o orador, filósofo e político encontrarão o historiador e é justamente desta articulação que nasce a grande contribuição que o presente livro pretende oferecer. Se o tempo presente e sua efemeridade não reservam grande lugar aos clássicos, é preciso lembrar que eles – e em particular Cícero – assumiram papel fundamental nos debates de Filosofia do Direito e Política que os sucederam. Cícero reverbera na Idade Média, no Renascimento com a urgência de se pensar a república e na Modernidade. É, portanto, tema incontornável às reflexões sobre política e direito e ousaríamos dizer, absolutamente relevante para a atualidade.Com o zelo de um pesquisador arguto e com a erudição que o tema requer, o autor apresenta uma eloquente e instigante abordagem do pensamento político de Cícero. Com esta obra, Igor Moraes Santos faz jus à contribuição do Arpinata, faz justiça aos clássicos, ao convidar o leitor a uma discussão profunda e inovadora de um autor antigo tão necessário ao tempo presente.Belo Horizonte, outono de 2021.Profa. Dra. Karine SalgadoProfessora Associada da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSSUMÁRIOINTRODUÇÃO ............................................................................. 16Parte IA ideia de res publica:Política e Direito em CíceroCAPÍTULO 1AS FORMAS DE GOVERNO: DA HISTÓRIA À TIPOLOGIA POLÍTICA .. 421.1. Pilares da tradição política grega ............................................ 43CAPÍTULO 2LINEAMENTOS POLÍTICO-JURÍDICOS DA RES PUBLICA ROMANA COMO A MELHOR CONSTITUIÇÃO ............................................... 872.1. Da natureza humana à moral ................................................. 882.2. O desenho da res publica ......................................................... 992.2.1. Formação e transformação das instituições político-jurídicas re-publicanas: auctoritas, potestas, imperium .................................... 1002.2.2. O equilíbrio constitucional: aequabilitas ............................. 1152.2.3. Contornos do projeto político-jurídico: optimates, princeps, liber-tas ............................................................................................ 124CAPÍTULO 3A IDEIA CICERONIANA DE RES PUBLICA .................................... 15414 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSParte IINATUREZA, ELOQUÊNCIA E FILOSOFIA:As trilhas da história como fundamento da ideia de res publicaCAPÍTULO 4AS LEIS DA RES PUBLICA: NATUREZA E HISTÓRIA ...................... 1714.1. Lex est recta ratio .................................................................. 1724.2. Da lei natural à lei humana .................................................. 1814.3. As leis de Cícero .................................................................. 1884.4. Tradição e inovação para a estabilidade constitucional .......... 197CAPÍTULO 5FILOSOFIA E PRÁTICA POLÍTICO-JURÍDICA SOB O MANTO DA ELOQUÊNCIA ............................................................................ 2095.1. A eloquência: caminhos para uma arte entre a prática e a teoria . 2135.2. A formação do homem político pela eloquência .................... 224CAPÍTULO 6O ORADOR E A HISTÓRIA .......................................................... 2406.1. A tradição e a história: mos maiorum ..................................... 2426.2. Da história antiquária à história eloquente: magistra vitae ...... 2536.3. Fundamentos histórico-axiológicos do discurso: exempla ....... 2646.4. Ficção, verdade e verossimilhança na história ....................... 271 | 15 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSCAPÍTULO 7TRADIÇÃO E FILOSOFIA: dos gregos aos romanos ....................... 2857.1. Cum dignitate otium ............................................................. 2887.2. Philosophia togata ................................................................ 2937.2.1. Tradução: o nascimento da filosofia romana ....................... 2977.2.2. Cícero acadêmico: o diálogo e as autoridades filosóficas ..... 3047.3 Humanitas ............................................................................ 3127.3.1. Societas generis humanis ..................................................... 318CAPÍTULO 8A FILOSOFIA E A HISTÓRIA NA IDEIA DE RES PUBLICA .............. 3238.1. A constituição ancestral ....................................................... 3248.2. O ideal como utopia? ........................................................... 3278.3. A ideia em Platão e em Cícero .............................................. 3318.4. A melhor res publica no passado, no presente ou no futuro? ... 3388.5. A res publica entre ideia e história ......................................... 3428.6. A história como fundamento e a legitimação da configuração polí-tico-jurídica .............................................................................. 354CONCLUSÃO ............................................................................. 366REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................,38016 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSINTRODUÇÃOLe passé n’eclairant plus l’avenir, l’esprit marche dans les ténèbres.1Os clássicos recontos da história da filosofia são uníssonos em apontar, entre as raízes primeiras do pensamento político-jurídico, pilares teóricos e culturais originários do mundo greco-romano. Sem prejuízo das reavaliações contemporâneas sobre as eventuais insuficiências da continuidade difundida pelas historiografias tradicionais, é iniludível que, seja via herança, seja por reapropriação, a Antiguidade foi integrada ao ideário moderno e ainda ecoa na Filosofia do Direito e do Estado. Para compreender os seus contornos, sempre somos convocados a passar pela Grécia e ver a descoberta do logos e as ricas experiências políticas direcionarem o Ocidente ao homem e ao universal. Nessa jornada, somos também atraídos a Roma, onde os êxitos helênicos não apenas sobreviveram, como ganharam novo esplendor com o aporte de um marco indelével, o direito. Essa foi uma inovação invulgar. O genius latino concebeu mecanismos sofisticados de limitação e organização do poder, fortalecendo-os com a juridificação de relações políticas e sociais, isto é, canalizando os valores mais caros da comunidade na forma de direitos: a justiça foi, de forma inédita, verdadeiramente vivida e teorizada2. Quando recobrada e reelaborada a partir do Medievo, a consciência jurídica romana tornou-se decisiva para a edificação do direito moderno, ora calcado na afirmação de direitos fundamentais “tribuídos” a um sujeito de direito universal3, selando Roma como a mãe da tradição jurídica ocidental:1 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Trad. Neil Ribeiro da Silva. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010, p. 479 (adaptado): “O passado já não esclarece o futuro, o espírito marcha nas trevas.”2 SALGADO, Joaquim Carlos. A experiência da consciência jurídica em Roma. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano XIX, n. 1, 2001, p. 34.3 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 37: “Consciência jurídica é consciência da juridicidade, entendida como exigência de normatividade, segundo as categorias jurídicas fundamentais, ou seja, exigência de normatividade pela qual se universaliza formalmente uma conduta, ou se tribui universalmente um valor (universalidade material), segundo uma estrutura bilateral decorrente da exigibilidade do bem tribuído ou da conduta normatizada, com força aparelhada irresistível, mediante uma ação caracterizadora de direito universal.” | 17 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSA grande quantidade de material que nos foi trans-mitida e que abrangemos no termo “direito roma-no” forma parte integrante do mundo ocidental. Ele formou nações e sistemas jurídicos e permitiu que eles tomassem consciência de sua própria identi-dade. Forneceu a base do caráter racional dos sis-temas e do legalismo das nações ocidentais. Além disso, mesmo o próprio princípio da resolução de conflitos sociais e econômicos não apenas por for-ça, autoridade ou compromisso, mas também pela aplicação de regras conceituais gerais - que é a ca-racterística do pensamento jurídico ocidental - tor-nou-se possível com base, e talvez apenas sobre a base, do direito romano, ou o que se pensava ser o direito romano. Na realidade, para usar as boas palavras faladas em homenagem ao famoso histo-riador europeu do direito, Paul Koschaker, o direito romano é a vinculum iuris quo totiens occidens conti-netur [um vínculo de direito pelo qual tantas vezes o Ocidente é mantido em conjunto].4Foi por figurar incessantemente nesse arcabouço ideológico e axiológico que Roma despontou como matriz clássica do Estado ético de direito5. Embora inexistisse propriamente Estado na Antiguidade – porquanto “realidade constituída historicamente em virtude da própria natureza social do homem”6, no contexto dos albores da Modernidade7 –, algumas formas precedentes de ordenação social, por sua exemplaridade e simbolismo, foram eleitas como fontes efetivas ou retrospectivas para a sua fundação 4 WIEACKER, Franz. The importance of Roman Law for Western Civilization and Western Legal Thought. Boston College International and Comparative Law Review, Boston, v. 4, n. 2, p. 257-281, 1981, p. 257-258 (tradução nossa). No mesmo sentido, SALDANHA, Nelson. O Direito Romano e noção ocidental de “Direito”. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 20, n. 80, p. 119-124, out./dez. 1983, p. 122.5 HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. São Paulo: Alameda, 2011, p. 236; SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 37-68, abr/jun 1998.6 REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 9.7 HORTA. História do Estado de Direito, op. cit., p. 26-27.18 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmaterial e para o seu alicerçamento conceitual, dentre as quais a polis grega e a civitas romana.Uma bem consolidada cultura helênica repercutiu profundamente em uma então incipiente cultura latina, que, por sua vez, promoveu – em larga medida, intencionalmente – a incorporação de saberes, práticas e crenças, a ponto de não poderem ser compreendidas de modo apartado. Porém, como acima pontuamos, o ineditismo dos romanos sobressai por terem associado, à sua experiência política, uma consciência jurídica recém-concebida8. Portanto, simultaneamente a uma estrutura política monumental e em constante modificação, que escorou “o maior império de todos os tempos”, Roma foi também “o lugar do nascimento das categorias fundamentais do direito e da explicitação da justiça como ideia do direito”9. No seio desse turbilhão cultural, entre política e direito, encontramos uma mente arguta que identificou os movimentos de transformação das estruturas de poder, da intelectualidade e da tradição em um período-chave na história romana: Marco Túlio Cícero10.8 NAY, Olivier. História das ideias políticas. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 56.9 SALGADO. A ideia de justiça no mundo contemporâneo, op. cit., p. 41.10 Nascido em 106 a.C., em Arpino, Cícero foi enviado ainda jovem para Roma, junto com seu irmão Quinto, para ser educado. Proveniente da ordem dos equites, sem lastros de nobreza, mas economicamente confortável, dedicou-se aos primeiros contatos com os saberes filosóficos. O interesse despertado pelos problemas universais propostos pela tradição teórica grega permaneceu ao longo de toda a vida, alimentada por viagens e estudos frequentes. Além dos ensinamentos filosóficos, aprendeu oratória, direito e política com Quinto Múcio Scaevola, jurisconsulto, cônsul e pontifex maximus. Ingressou na carreira pública em 75 a.C. como questor, o primeiro grau do cursus honorum, seguindo como edil em 69 a.C., pretor em 66 a.C. e, finalmente, cônsul em 63 a.C. Na mais elevada magistratura, enfrentou a conjuração de Catilina, debelada com a acusação do facínora e de seus associados perante o Senado. Cf. SALGADO, Joaquim Carlos. O humanismo de Cícero: a unidade da filosofia e da vida política e jurídica. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, Série “Estudos Sociais e Políticos”, Edição Comemorativa dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG (1892-2012), n. 40, p. 157-176, 2012, nota 4, p. 157; SIHLER, Ernest G. Cicero of Arpinum: a political and literary biography being a contribution to the history of ancient civilization and a guide to the study of Cicero’s writings. New Haven: Yale University Press; London: Humphrey Milford; Oxford: Oxford University Press, 1914, p. 23-24; CIACERI, Emanuele. Cicerone e i suoi tempi. Milano; Roma; Napoli: Società Editrice Dante Alighieri,,1926, v. I, p. 10. Entre outras biografias recomendáveis, consultamos e mencionamos BOISSIER, Gaston. Cicéron et ses amis: étude sur la societé romaine du temps de César. 13. ed. Paris: Hachette, 1905; COLLINS, W. Lucas. Cicero. Philadelphia: J. B. Lippincott & Co., 1873; TAYLOR, Hannis. Cicero. A sketch of his life and works. Chicago: A. C. McClurg & Co., 1916; MAFFII, Maffio. Cícero e seu drama político. Trad. Maria José de Carvalho. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948; SHACKLETON BAILEY, D. R. Cicero. London: Duckworth, 1971; GRIMAL, | 19 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSInobstante as acaloradas disputas em torno de suas filiações filosóficas, é imperativo reconhecer vigor original no orador de Arpino, resultante da sua perspicácia em perceber a distância que separava os moldes teóricos helênicos da tradição político-jurídica romana. De fato, apesar dos vultuosos êxitos da Hélade com a filosofia, no olhar dos homens do Lácio, ela permanecia dissociada de aplicabilidade para o agir forense e bélico. Sem negligenciar essas deficiências, Cícero admitia a importância desses mesmos recursos intelectuais para o enfrentamento dos problemas do presente, uma vez que se tornava evidente a incapacidade do mos maiorum de fornecer todas as respostas para circunstâncias então inéditas. Diante disso, por diversas vias, buscou “desenvolver elementos teóricos adequados à vida romana”11.Cícero era cônscio da importância do conhecimento para bem governar, principalmente por ter cotejado estudos com a ação pública. Seja em defesa do cidadão, seja em proteção à República12, a eloquência assume, em sua vida e em sua obra, função eminentemente ética. A retórica, inaugurada pelos gregos, finalmente rechaça as suspeitas sobre ela incidentes e passa a ser usada como instrumento válido para o saber, pois conduz ao consenso, ao abrir o caminho das consciências para ver e aceitar a verdade, ponto de partida do procedimento argumentativo13. Assim foi a carreira de Cícero no fórum, desde a defesa de Sexto Róscio Amerino14, e como homem político e ator intelectual na defesa dos interesses comunitários. Pierre. Cicerón. Trad. Hugo F. Bauzá. Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1990; FUHRMANN, Manfred. Cicero and the Roman Republic. Trad. W. E. Yuill. Oxford: Blackwell, 1992; BUTLER, Shane. The hand of Cicero. London; New York: Routledge, 2002; EVERITT, Anthony. Cicerón. Trad. Andrea Morales. Barcelona: Edhasa, 2007. Sobre o episódio de Catilina, ver, especificamente, SALGADO. O humanismo de Cícero, op. cit., p. 162-164; A ideia de justiça no mundo contemporâneo, op. cit., p. 170-172; BOISSIER, Gaston. La conjuration de Catilina. Paris: Hachette, 1905, passim; CÍCERO. As Catilinárias. Trad. Maximiano Augusto Gonçalves. 6. ed. bilíngue. Rio de Janeiro: Livraria H. Antunes, s/d; PLUTARCO. Cícero, 11-22. Cf. Vidas paralelas: Demóstenes e Cícero. Trad. Marta Várzeas. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010, p. 118-132.11 SALGADO. O humanismo de Cícero, op. cit., p. 159; 161.12 Como no caso contra o governador Gaio Verres, durante a questura em 75 a.C., na Sicília, cujos discursos de acusação estão compilados em In Verrem. Ver também PLUTARCO. Cícero, 7-8.13 SALGADO. A ideia de justiça no mundo contemporâneo, op. cit., p. 165-166; 170.14 CÍCERO. Rosc. Am. I, 1. Cf. Discursos V. Trad. Jesús Aspa Cereza. Madrid: Gredos, 1995, p. 21: “Tengo para mí, jueces, que, extrañados, los estaréis preguntando a qué viene que, mientras, permanecen en sus asientos tanto oradores consagrados y tantos hombres ilustres, me haya levantado, entre todos, yo, que posiblemente, ni por mi edad ni por mis cualidades ni por mi prestigio, debo compararme con esos que siguen 20 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSDo mundo romano, Cícero manteve-se vivo entre os medievais, ressoando na De civitate Dei15 de Santo Agostinho, e entre os modernos16, tornando-se fonte de inspiração para nomes como Maquiavel17 e, mais tarde, Montesquieu18. Sob certa perspectiva, a tradição erguida em torno da obra política ciceroniana dificultou a sua compreensão, mormente pela incompreensão do raciocínio calcado na influência cética acadêmica; pela aversão iluminista aos resquícios de poder da Igreja, considerando o papel dos seus escritos sobreviventes como uma das principais fontes para a formação educacional clássica; e pelas releituras dos escritos platônicos a partir do século XIX19. Ainda assim, o Arpinata foi exaltado como influxo substancial da Antiguidade para a constituição do pensamento medieval e, redescoberto pelo humanismo renascentista, concorreu para a edificação de uma nova visão sobre a história20, notadamente como “modelo de cidadania”21 e de republicanismo22. Por um lado, a estilística latina exuberante e a eloquência modelar fizeram dele “figura de autoridade cultural incomparável”, cujo estudo é sentados. Todos estos que veis aquí presentes en este proceso consideran conveniente rechazar una injusticia que se ha forjado sobre un delito sin precedentes; pero, por culpa de la malicia de los tiempos, no se deciden a llevar ellos personalmente la defesa. Así ocurre que están presentes porque cumplen una obligación, pero callan por evitar cualquier riesgo.”15 SALGADO, Karine. A filosofia da dignidade humana: a contribuição do alto medievo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009, nota 67 da p. 151; SANTO AGOSTINHO. De civitate Dei XIX, 21.16 VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 436 et seq, em especial p. 454-496. Para uma síntese do resgate de Cícero nos séculos XV-XVI, COSTA, Emilio. Cicerone Giureconsulto. 2. ed. Bolonha: Nicola Zanichelli Editore, 1927, v. 1, p. 4-7.17 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel historiador. Revista USP, São Paulo, n. 29, p. 182-188, mar./maio 1996, p. 184; Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991, passim.18 Vide o pouco conhecido Discurso sobre Cícero. (Trad. Igor Moraes Santos. Aufklärung, João Pessoa, v. 5, n. 3, p. 207-212, set./dez. 2018) e as célebres Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência. Trad. Pedro Vieira Mota. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.19 FOX, Matthew. Cicero’s Philosophy of History. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 69-75. Ver também ALTMAN, William H. F. (ed.). Brill’s Companion to the Reception of Cicero. Leiden: Brill, 2015.20 CROCE, Benedetto. História como história da liberdade. Trad. Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006, p. 423 et seq.21 FOX. Cicero’s Philosophy of History, op. cit., p. 70-71.22 BIGNOTTO, Newton (org). Matrizes do republicanismo. Belo Horizonte: UFMG, 2013; Id. Origens do republicanismo moderno. Belo Horizonte: UFMG, 2001, passim. | 21 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSimprescindível por representar “o principal mediador do mundo romano” para a contemporaneidade. Por outro, o compromisso com a res publica, em ação e em ideia, elevou-o ao rol dos fundadores do pensamento político-jurídico ocidental23. Certamente esses são motivos mais do que suficiente para mantê-lo em discussão perene. Porém, todos eles se tornam ainda mais relevantes ao descobrirmos que o núcleo de seu legado é também o cerne de suas preocupações: a res publica, a melhor constituição, ordem político-jurídica fundada na liberdade e seu garante, por meio da disposição balanceada de populus, Senatus e magistratus. Nela, o direito é unidade ética entre razão e vontade do poder24, e a participação política, um dever moral: cabe ao cidadão devotar-se à república, pois aquilo “que é desprovido de utilidade para a república” não é útil para o cidadão (potest autem, quod inutile rei publicae sit, id cuiquam civi utile esse?)25. A forte presença da tradição na mundivisão romana colabora para Cícero discernir como a mais perfeita das constituições não é resultado de meras,conjecturas, mas construção histórica. Assim foi Roma, cujo povo desenvolvera, ao longo do tempo, uma dinâmica político-jurídica sofisticada e equilibrada. Em vista disso, a legitimidade dessa específica conformação organizacional do poder, conquanto resguardada a intervenção da razão, operante por meio da designação das leis a orientá-la e da própria lucidez de que a res publica é o melhor tipo de governo em virtude da singularidade de sua composição, a fazer dela civitas garantidora da liberdade, parece residir nas suas origens históricas.Antes de tudo, precisamos ponderar como a história era compreendida na Antiguidade. O mundo humano era eivado de contingência, efemeridade, do que exsurgia o desejo de sair dessa condição e atingir a eternidade, de subtrair-se à caducidade do tempo26 que tudo faz e consome27, “pai de todas 23 Sobre a importância da filosofia antiga para a contemporaneidade, ver FRITZ, Kurt von. The relevance of ancient social and political philosophy of our times: a short introduction to the problem. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1974, passim.24 SALGADO. O humanismo de Cícero, op. cit., p. 169.25 CÍCERO. Off. III, 101. Cf. Dos deveres. Trad. Carlos Humberto. Gomes Lisboa: Edições 70, 2000, p. 153.26 DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a história. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Iluminuras, 1996, p. 18-19; 49. O tempo que não é apenas fenômeno natural, mas aspecto do ordenamento moral do universo. Cf. LLOYD, G. E. R. Le temps dans la pensée grecque. Originalmente publicado em RICOEUR, Paul et al. Les cultures et le temps. Paris: UNESCO/Payot, 1975, p. 5; HESÍODO. Teogonia 901 et seq; Os trabalhos e os dias 109-201.27 ÉSQUILO. Coéforas 965; SÓFOCLES. Ajax 715.22 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSas coisas”28. Acreditavam os antigos ser isso possível por meio da imitação do passado, reatualizado29, pois, na ciclicidade permanente do universo30, os eventos naturais voltam a ocorrer, mas o humano permanece apenas pela repetição31. Nesse ínterim, o homem começa a perceber a história como experiências acumuladas pelas gerações32, “o passado do homem enquanto homem, do homem que já se tornou homem”33. De natural, o tempo passa a histórico, presença-ausência34 na qual o homem encontra papel próprio, autêntico35, percebe a sua marca identificadora36: tem história justamente porque tem natureza, elementos constantes, recorrentes e típicos37. Como o humano em sentido mais pleno, a história vai se tornando realização da 28 PÍNDARO. Olímpicas II, 17. Cf. Odas y fragmentos. Trad. Alfonso Ortega. Madrid: Gredos, 1984, p. 81.29 REIS, José Carlos. Teoria e história: tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012 (versão digital), p. 34-35.30 Sobre a concepção cíclica do tempo, ver PLATÃO. Timeu 30c-40a; Mênon 81a-d; Fédon 70a-72e; 76e; Fedro 246e et seq; O político 269c-275a; ARISTÓTELES. Física IV, 10, 218a 31 et seq; VIII, 9, 265a-b; Do céu I, 2, 268b; I, 9, 279a 12; II, 1, 283b 26-29; Metafísica XII, 7, 1072a 20-25. Cf. as reflexões de LAMPUGNANI, Annabella. Il ciclo nel pensiero greco fino ad Aristotele: evoluzione storica di un’idea e sue implicazioni teoretiche. Firenze: La Nuova Italia, 1968, passim; POMIAN, Krzystof. L’ordre du temps. Paris: Gallimard, 1984, p. 233-235; REIS, José Carlos. História e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 16.31 A repetição é fonte de segurança e condição de sobrevivência do grupo social, cf. ATTALI, Jacques. Historias del tiempo. Trad. José Barrales Valladares. México: Fondo de Cultura Económica, 1985, p. 20.32 KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Trad. Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2014, p. 24.33 MARROU, Henri-Irénée. De la connaissance historique. 6. ed. Paris: Seuil, 1975, p. 32 (tradução nossa).34 SANTO AGOSTINHO. Confessiones XI.35 CHÂTELET, François. El nacimiento de la historia: la formación del pensamiento historiador en Grecia. Trad. César Suárez Bacelar. 2. ed. Mexico: Siglo XXI, 1979: “El hombre arcaico se liberaba del tiempo por el exorcismo, pero sólo era capaz de representar un papel ya vivido; el hombre épico gozaba de la libertad de una esencia y desplegaba sus defectos y sus virtudes; el hombre de la historia, al llegar a la temporalidad, escapa a las determinaciones de la esencia para sufrir las de la existencia.”36 ORTEGA Y GASSET, José. História como sistema. Mirabeau ou o político. Trad. Juan A. Gili Sobrinho e Elizabeth Hanna Côrtes Costa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 49.37 CASSIRER, Ernst. Antropología filosófica: introducción a una filosofía de la cultura. 5. ed. Trad. Eugenio Ímaz. México: Fondo de Cultura Económica, 1968 (versão digital), p. 148. | 23 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOScultura38, por meio de ação e teoria, reflexão condensada em preceitos para orientar o agir. Com efeito, o principal valor da história na Antiguidade destina-se à ação política. A grande preocupação dos homens daquele tempo era assegurar a unidade e a estabilidade da vida social, isto é, evitar a fragmentação da comunidade, constantemente ameaçada por fatores externos, como a guerra, e internos, como os interesses díspares. Em resposta ao desejo premente pela eternidade, esforçaram-se para suplantar as transformações incessantes das formas de governo e das relações sociais, focando nos traços de permanência e atrevendo-se a tentar imobilizar a cidade em um “instante eterno”39. Nesse processo, as bases fundacionais das estruturas político-jurídicas, construídas e reconstruídas por um povo, ininterruptamente, ao longo de sua existência, buscam amparo no seu próprio ideário cultural, do qual a cadeia intergeracional de memórias é parte essencial40.A reverência ao passado era uma constante na sociedade romana, compondo a forma e o conteúdo do comportamento e do discurso tanto dos cidadãos comuns quanto dos sacerdotes, magistrados e senadores, que, dotados de auctoritas, por deterem a palavra pública, exprimiam a tradição e exigiam o seu respeito. No entanto, um exame cuidadoso deixa entrever que a substância moral e axiológica do mos maiorum era imprecisa e oscilante, até mesmo a noção de ancestralidade. Os principais marcos culturais eram atribuídos às origens remotas da cidade; a memória residia em um universo atemporal onde tudo parecia já instituído. No direito isso era ainda mais evidente: o lastro consensual no tempo (vetustas) conferia valor normativo ao costume, integrava-o à ordem jurídica citadina, mas sem fixar-lhe conteúdo preciso. Os censores eram, então, chamados para assegurar o respeito ao vetus, punindo quem desrespeitasse as tradições. Esse quadro entra em crise nos séculos II e I a.C., com o choque cultural e as novas demandas políticas que o crescimento populacional e econômico, os conflitos sócio-ideológicos e a expansão militar passaram a requerer. Surgem debates e dissensões sobre 38 SALDANHA, Nelson. Historicismo e culturalismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Recife: FUNDARPE, 1986, p. 23.39 REIS. Teoria e história, op. cit., p. 42.40 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1997, t. III, p. 193-194; La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000, p. 108. 24 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSa autenticidade, o nascedouro e a definição de certas práticas, o lugar de cada ordem no jogo político, vide os limites do poder dos cônsules e dos tribunos, a demarcação entre povo e Senado. No ocaso do consenso acerca das instituições, a fundamentação no passado, com seu manto de legitimidade, torna-se recurso central. Redesenham-se, assim, as funções dos oradores e dos historiadores41.Orator tem sentidos múltiplos e indissociáveis:,o homem que sabe falar em público graças aos seus dons naturais e por estudo da retórica; o escritor, pois a eloquência também tem expressão escrita; o estadista, pois a palavra é, por excelência, o meio para governar. A história é, para o orador, em qualquer de suas faces, um instrumento de aperfeiçoamento moral, uma ética vivida pelo homem chamado a governar seus concidadãos e a sacrificar-se pela comunidade. Mais do que exigência pedagógica, é sentimento de continuidade e uma ordem necessária42. Para cumprir plenamente sua missão, deve seguir a marcha dos sucessos. Portanto, nem tudo se mostra útil: é necessário escolher, selecionar a tradição43. Em suma, um bom orador contribui para a preservação do passado, mesmo que não seja a sua intenção original. Ainda mais, o exercício da sua atividade consiste, em grande medida, em eleições que podem criar novos exemplos e, assim, inventar e reinventar a tradição44: “Os nossos feitos, ó romanos, sejam recordados pela vossa memória, cresçam em conversas, envelheçam e fortifiquem-se com os monumentos das letras [...]”45.41 MOATTI, Claudia. La raison de Rome: naissance de l’esprit critique à la fin de la République. Paris: Seuil, 1997, p. 31-33.42 ANDRÉ, Jean-Marie; HUS, Alain. La historia en Roma. Trad. Néstor Míguez. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1975, p. 23-28. Como destacam os autores e investigaremos na Parte II, a história somente se converteu em gênero literário em Roma após a morte de Cícero. Até então, era apenas a história poética, como as epopeias de Névio e de Ênio, ou a analística e o comentário. Salústio escreverá a Bellum Catilinae e será depois seguido por Cornélio Nepote, Pompeu Trogo e Tito Lívio. Cícero desenvolve uma concepção de história segundo a tradição romana, mas original, pois adicionada de elementos gregos, reivindicando para o orator a missão de escrever a história.43 Como lembra Braudel, “todo trabalho histórico decompõe o tempo decorrido, escolhe entre suas realidades cronológicas, segundo preferências e opções exclusivas mais ou menos conscientes”. Cf. BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. A longa duração. In: Escritos sobre história. Trad. J. Guinsburg e Tereza Cristina Silveira. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 44. 44 BLOM, Henriette van der. Cicero’s role models: the political strategy of a newcomer. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 87.45 CÍCERO. Cat. III, 26. Cf. As Catilinárias. Trad. Maximiano Augusto Gonçalves. 6. ed. | 25 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS De fato, o antigo e o novo digladiam-se no contexto do fim da República romana. Cícero devota-se ao passado, com os olhos no futuro, a partir do presente. Ele vive a alma republicana, não obstante, presencia a decadência política. Em decorrência disso, pretende mostrar que a tradição pode conviver com a inovação. É a única alternativa para evitar o colapso para o qual pressentia que a civitas caminhava. Significaria isso a existência de um “projeto” teórico e prático de resgate do mos maiorum, acompanhado da introdução de novas estruturas intelectuais e disposições normativas que permitissem o romano fazer política e direito, e também empenhado em formar o melhor homem político? Um espírito inserido em um horizonte coletivo arraigado na tradição e na valorização do passado, talvez seja o mais apto a perceber tais relações. Quando entra em contato com o pensamento dos gregos, cujas expressões culturais já flertavam com uma certa historicidade46 – vez que gestara a historiografia47, embora tivesse na universalidade metafísica o outro polo de um paradoxo ainda não resolvido –, tem a possibilidade de abrir novas trilhas. Uma delas é a introdução da história na filosofia, mais especificamente, na teoria da constituição mista. Das primeiras formulações genuinamente Rio de Janeiro: Livraria H. Antunes, s/d, p. 157.46 Historicidade dolorosa que começa a ser partejada com os épicos homéricos, vide VIDAL-NAQUET, Pierre. Temps des dieux et temps des hommes: essai sur quelques aspects de l’expérience temporelle chez les Grecs. Revue de l’histoire des religions, v. 157, n. 1, p. 55-80, 1960, p. 60; HARTOG, François. Os antigos, o passado e o presente. Org. José Otávio Guimarães. Trad. Sonia Lacerda, Marcos Veneu e José Otávio Guimarães. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, p. 16 et seq. Uma visão oposta em AUERBACH, Erich. Mimesis: la representación de la realidad en la literatura occidental. Trad. I. Villanueva e E. Ímaz. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1996, p. 10 et seq.47 Nascimento da historiografia que faz passar da épica do discurso para a existência política, através da investigação (historiê) do histor, que vê e sabe, julga os mitos e busca a verdade, evitando o esquecimento dos fatos notáveis e forjando um “patrimônio” para as gerações. Cf. HERÓDOTO. História I, Proemio; TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso I, 22; HARTOG, François (org.). A história de Homero a Santo Agostinho. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 50-52; SÄID, Suzanne. Myth and historiography. In: MARINCOLA, John (ed.). A companion to Greek and Roman historiography. Malden; Oxford; Victoria: Blackwell, 2007, 2v., p. 81-82. Vale lembrar que história, como “a trama dos acontecimentos propriamente dita” e “o relato complexo que a narra” (Geschichte e Historie), somente será uma preocupação efetiva na Modernidade, apesar de historia expressar preferencialmente a obra historiográfica entre os romanos. Ver DOSSE, François. A história. Trad. Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru: EDUSC, 2003, p. 7 et seq; KOSELLECK, Reinhart. historia/Historia. Trad. Antonio Gómez Ramos. Madrid: Trotta, 2004, passim; LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão et al. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, p. 18.26 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSteóricas, com Heródoto, passando por Tucídides, Platão, Aristóteles e Políbio, o problema da melhor forma de governo encontrará em Cícero resposta para alguns de seus principais desafios. Com efeito, nosso autor é homem político e filósofo, alerta em relação aos problemas da cidade e bem informado sobre as proposições especulativas gregas. Sabe que, desassistida, a prática, tal como desenvolvida, não é capaz de encontrar soluções, e que o pensamento helênico, apesar de majestoso, não se conecta suficientemente com o agir. Assim, uma audaciosa empreitada aparece em seu horizonte: conciliar teoria e prática, filosofia e vida político-jurídica, Grécia e Roma.É nesses termos que a compreensão dos pilares da experiência romana constitui passo fundamental para o entendimento da própria cultura jurídica e política enquanto consciência do direito e do agir na ordem social no “tempo historicamente vivido”48. Cremos poder agregar a esse debate a identificação do lugar da história nas confluências entre o poder organizado na forma de res publica, o direito emanado do consenso e a garantia da liberdade. Ali a história parece proporcionar legitimidade à configuração político-jurídica, fornecendo as condições basilares para o orador, enquanto historiador e filósofo, formular um modelo teórico, mas sem descurar da tradição. Assim, com Cícero, a consciência histórica romana49 assume a história em conexão com a teoria, mas uma tarefa de ligação somente possível pelo melhor homem, dotado de eloquência e filosofia, o que faz do próprio humanismo ciceroniano um momento exemplar no curso da história da Filosofia do Direito e do Estado. 48 Inferência a partir de REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 217-218.49 O que podemos chamar de “consciência histórica antiga” tem contornos distintos da “consciência histórica moderna”, mas não por isso significa menos. Ali também há apreensão do tempo e do lugar do homem e de suas ações nesse transcurso. Quer dizer, é a consciência de alguma forma de história, ainda que,não aos moldes modernos, o que demanda cautela no uso de instrumentos investigativos com que se pretende trazê-la a lume hoje. Logo, há a necessidade de matizar e corrigir as generalizações que pretendem identificar uma uniforme ausência de concepção de tempo e de existência histórica em toda a mentalidade arcaica, como faz, por exemplo, ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Trad. José A. Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992. Sobre a consciência histórica antiga e moderna, ver LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia VI: ontologia e história. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2012; REIS, José Carlos. História da “consciência histórica” ocidental contemporânea: Hegel, Nietzsche e Ricoeur. Belo Horizonte: Autêntica, 2011; ALVES, Ronaldo Cardoso. Da consciência histórica (pré) (pós?) moderna: reflexões a partir do pensamento de Reinhart Koselleck. Saeculum: revista de história, João Pessoa, n. 30, p. 321-339, jan./jun. 2014. | 27 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSNosso trabalho parte, então, do questionamento sobre como a concepção de res publica de Marco Túlio Cícero é impactada pelas transformações sofridas pela cultura romana no século I a.C., ainda ciosa da tradição, mas tendente a inovações, e que se volta crescentemente para a história. Ao tomarmos por foco o que Cícero entende como a constituição perfeita, a res publica, logo percebemos uma complexa relação que frequentemente confunde intérpretes. Em obras como De re publica, avulta-se a forma mista de governo como a melhor, parecendo confundir-se com Roma. Mas não com aquela em que o autor vive e escreve, e sim com a Roma republicana de alguns séculos antes, quando supostamente atingira um equilíbrio ótimo, após ter sido submetida, desde a sua fundação, a diversas adequações pelos maiores. Contudo, acreditamos que a res publica traçada por Cícero não é nem a Roma de sua época, nem a Roma do passado: ela é uma ideia da melhor constituição, tanto da melhor forma concebível, quanto da melhor possível ao homem. Expliquemo-nos.Platão acredita na atemporalidade da perfeição, a ideia (eidos), somente alcançável pela filosofia. Para Cícero, por outro lado, como bom romano, a ideia só faz sentido se gestada da história, pela história, para a história. E esta, para o Apinata, é o caminho pelo qual o homem vai em busca do desenvolvimento de sua natureza racional. Por ser dotado de razão, à diferença dos demais seres, tem a missão perpétua de aprimorá-la, sempre tentando criar as condições mais propícias para tanto. Conhecendo a lei natural, a razão que a tudo rege, pode compreender o movimento de nascimento, crescimento e declínio das coisas. Ciente disso, elabora a lei humana como reflexo daquela, ou seja, expressão da razão e concordante com a natureza. Mas essa lei, porque humana, é produto do agir do homem, portanto, também histórica. Dando forma à res publica, situa-a entre a natureza e a história.Em vista desse cenário, intriga-nos como a história ingressa na política e no direito em Cícero. Por certo, em meio à dinâmica do poder, da razão e da liberdade, ela assume uma forma peculiar, entre a historiografia e a filosofia. Essas duas dimensões precisam ser admitidas, desde logo, como indissociáveis, pois será no discurso exarado pelo orador, líder político impregnado de saber filosófico, que poderemos encontrar os propósitos, as 28 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSfunções e os modos pelos quais a história se faz presente na formação da estrutura político-jurídica de Roma, isto é, da res publica. Ora, “é na história que se realiza, se encontra e se compreende o ser do homem”50, de modo que “nossa arte, nossos monumentos literários estão carregados dos ecos do passado, nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas lições, reais ou supostas”51. Apreender o homem enquanto zoon politikon ou hom*o juridicus importa entendê-lo antes como homem histórico52. Nesses termos, percorrer a obra ciceroniana considerando a historicidade do político e do jurídico por ele já percebida incipientemente, permitir-nos-á entrever uma gama de novas perspectivas no pensamento do filósofo, nascedouro de um legado ímpar para a posterioridade. Em adição, fornecer-nos-á contributo substancial para recobrar uma face hoje perdida da tradição ética ocidental, mas pulsante em Cícero, a saber, a função pedagógica da história, “forma de consciência do passado em que este se constitui como tradição num sentido eminentemente ético, vem a ser, como constelação exemplar de eventos, de experiências, de ações e normas que orientam a rota do devir histórico no fugidio presente”53. Para ela, o passado, como tradição, na forma do mos maiorum, é uma amálgama de res gestae e de anseios e interesses presentes projetados, vetustez e contemporaneidade, que permeia o pensar e o agir. Trata-se de um modelo de associação entre autoridade e passado no qual este último é percebido como compósito de tradição e como fonte para a história baseada em exemplos e imitações54. Como define o pseudo-Dionísio, 50 SALDANHA, Nelson. Filosofia, povos, ruínas. Páginas para uma filosofia da história. Rio de Janeiro: Calibán, 2002, p. 76.51 BLOCH, Marc. Apologia da história, ou O ofício de historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 42.52 SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 169: “[...] das formas de organização das coisas humanas não cabe dizer que ‘evoluem’, mas – com outro sentido na expressão – que se dão na história e possuem um significado essencialmente histórico: seu ‘evoluir’ ocorre dentro de determinados contextos e corresponde a um especial sentido do mudar que se dá na história.”53 LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1988, p. 250. Ver também KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006, p. 43; MARQUES, Juliana Bastos. A historia magistra vitae e o pós-modernismo. História da historiografia, Ouro Preto, n. 12, p. 63-78, ago. 2013, p. 71; CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 41 et seq.54 HARTOG, François. Time’s authority. In: LIANERI, Alexandra (ed.). The Western time of ancient history: historiographical encounters with the Greek and Roman pasts. | 29 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSa história é “filosofia ensinando por exemplo”55. Sem quebrar o laço de fides com o público e fincando a sua auctoritas56, o orador faz da história “verdadeira testemunha dos tempos”, “luz da verdade”, “vida da memória”, “mensageira da tradição”. Com Cícero, a história na Antiguidade ganha forma e nome: magistra vitae57.Mestra da vida, porém, o escritor antigo não era simples imitador, e sim um competidor que estava sempre buscando posicionar-se em relação aos seus antecessores, assumindo o que de bom produziram e agregando contribuições novas58. A história é tradição em contínua produção. Mesmo imersos em equívocos, distorções, invenções, os antigos “tomaram consciência da extensão, da continuidade e da profundidade do passado”, buscando “salvá-lo da morte do esquecimento”59 através da fixação na Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 34. Sobre a constituição exemplar de sentido, ver RÜSEN, Jörn. História viva. Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora UnB, 2007, p. 44 et seq. 55 KELLEY, Donald R. Faces of History: historical inquiry from Herodotus to Herder. New Haven: Yale University Press, 1998, p. 10. A frase é de Ars rhetorica XI, 2, equivocadamente atribuída a Dionísio de Halicarnasso, apud ST. JOHN, Henry. Lord Viscount Bolingbroke. Letters on the study and use of history. London: A. Millar, 1752,,p. 15.56 MARINCOLA, John. Authority and Tradition in Ancient Historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 5-8. Sobre formas de auctoritas, sob o ponto de vista da narrativa e do poder, com enfoque na Idade Média, ver SCANLON, Larry. Narrative, authority, and power: the medieval exemplum and the Chaucerian tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 37 et seq. 57 CÍCERO. De or. II, 9, 36. Cf. SCATOLIN, Adriano. A invenção no Do orador de Cícero: um estudo à luz de Ad Familiares I, 9, 23. 308f. Tese (Doutorado em Letras Clássicas). - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009 (“Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur?”). E, com esse epíteto, o peso de Cícero reverberará na história humanista, a primeira concepção de história a se formar na Modernidade, a partir da redescoberta da literatura antiga. Cf. PAYEN, Pascal. A constituição da história como ciência no século XIX e seus modelos antigos: fim de uma ilusão ou futuro de uma esperança? História da historiografia, Ouro Preto, n. 6, p. 103-122, mar. 2011, p. 105-108.58 MARINCOLA. Authority and Tradition in Ancient Historiography, op. cit., p. 14.59 DOMINGUES. O fio e a trama, op. cit., p. 70.30 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmemória60. Então, fizeram da história “trabalho da morte e trabalho contra a morte”61, verdadeira “ciência do homem”62.Não foi o que viram muitos dos que caracterizaram, pejorativamente, os escritos históricos da Antiguidade como mera literatura, por estar ela tratada no âmbito da retórica, aproximando-se ou distanciando-se da poesia e da filosofia63-64. Por nossa vez, cremos nela encontrar muito mais. Entre os antigos, a história não era apenas objeto do historiador, mas usada por todo aquele que detinha conhecimento do passado, ou sabia como empregá-lo, de modo a resgatar ou criar o exemplo ético perfeito a legitimar o seu discurso65. Ou seja, estava sujeita a uma dose de relativismo, na esteira da sofística, tão críticada por Sócrates e Platão, que mostravam o filósofo querendo revelar 60 Rhetorica ad Herennium III, 28 et seq; YATES, Frances. The art of memory. 2. ed. London; New York: Routledge, 1999, p. 4-6. Sobre a memória como faculdade de conservação, ver POMIAN, Krzystof. Memória. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2000, v. 42, p. 507-511.61 CERTEAU, Michel de. La escritura de la historia. Trad. Jorge López Moctezuma. México: Universidad Iberoamericana, 1999, p. 19. Ver SALÚSTIO. Bellum Catilinae 3, 1-2; HORÁCIO. Carmina III, 30, 1-6; TÁCITO. Historiae IV, 6, 1; Id. Dialogus de oratoribus 10; PLÍNIO, O VELHO. Naturalis historia, prefácio 16; POLÍBIO. História I, 1-5.62 FEBVRE, Lucien. Combates por la historia. Trad. Francisco J. Fernández Buey e Enrique Argullol. 5. ed. Barcelona: Ariel, 1982, p. 55.63 JOLY, Fábio Duarte. Apresentação. In: JOLY, Fábio Duarte (org.). História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, p. 8.64 O nascimento da escrita da história, aos olhos modernos um avanço louvável, no pensamento helênico de então não pareceu necessariamente uma conquista. Ali uma coisa era o passado enquanto fonte de paradigmas, outra a história enquanto estudo sistemático, que não é suficientemente filosófica, pois não pode estabelecer verdades. Em geral, os filósofos guardaram eloquente silêncio acerca da história, o que deixa entrever uma postura de indiferença. Mais chamava a atenção a poesia, oposta à história e que reúne diversos gêneros, desde o épico e a lírica até a tragédia. Por ela eram transmitidos os mitos e o conhecimento do passado. Por mais adornadas que fossem as narrativas dessa espécie, n questionava que tivessem ao menos um fundo de verdade. O que coloca a história em desvantagem é o fato de tratar do contingente e, como assevera Aristóteles, não é possível uma ciência do acidental. Só era possível conhecimento (episteme) das coisas gerais, fixas e necessárias. Ao se limitar à descrição do que se move e aparece, a história é capaz de emitir apenas opinião (doxa), narração de coleção de fatos particulares. Por isso, mesmo a poesia é superior à história, na medida em que tende a formular juízos mais universais. Ainda assim, como conclui Collingwood, a história tentará fazer da doxa um conhecimento autêntico. Conforme ARISTÓTELES. Metafísica XI, 8, 1064b-1065b; Poética 1451a 36-1451b10; ARENDT. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 74-77; CATROGA, Fernando. Ainda será a História Mestra da Vida? Estudos Íbero-Americanos, PUCRS, Porto Alegre, n. 2, p. 7-34, 2006, p. 9; COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Trad. Alberto Freire. Lisboa: Presença, 1972, p. 46-47.65 HARTOG. Os antigos, o passado e o presente, op. cit., p. 56 et seq. | 31 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSuma verdade quase religiosa66. Por assumir essa maleabilidade, e malgrado ela, a história ganha nova vida com Cícero. Não enquanto versão antecipada da filosofia da história, que busca sentidos universais imanentes67, embora, como narrativa, seja um empreendimento hermenêutico para “coordenar todos estes disjecta membra do passado sintetizando-os e amoldando-os em uma nova forma”68. Também não como uma ciência da história, com sua objetividade, pois no orador-historiador repercute o mundo em que vive, “do qual não pode ocultar-se, o que quer que faça, e cujas contradições inevitavelmente o molestam”69, o evento que toma em exame é condicionado por seu “interesse de conhecimento” pelo “significado cultural” atribuído a ele70. O compromisso com a verdade, algo que veremos ser de suma importância para Cícero, orienta o dever da história de “esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros”, mas não imuniza71. A grande tarefa do historiador é sim “contar as coisas que ocorreram”72, pela medida da verdade, 66 DETIENNE, Marcel. Los maestros de verdad en la Grecia arcaica. Trad. Juan José Herrera. Madrid: Taurus, 1981, p. 145-146.67 LÖWITH, Karl. El sentido de la historia: implicaciones teológicas de la filosofía de historia. Trad. Justo Fernandez Bujan. Madrid: Aguilar, 1956, p. 7. O eterno repetir dos eventos naturais, dos homens e das coisas pode denotar pessimismo, mas não exclui a esperança de volta às origens, o retorno da idade do ouro, estado de inocência e felicidade no qual haveria sustento fácil na natureza, sem guerras e males. Essa etapa idílica seria seguida de idades da prata, do bronze e do ferro, progressivo declínio, até a destruição do homem. Mas logo ele renasceria sob uma nova idade do ouro, repetindo o curso. De todo modo, no período grego clássico já coexistiam visões de um certo progresso positivo, pelo qual o homem teria partido de um estado selvagem e miserável para conquistar a razão e rumar ao melhor. Porém, não se tratava ainda de filosofias da história. Cf. LAMPUGNANI. Il ciclo nel pensiero greco fino ad Aristotele, op. cit., p. 20-22; MOMIGLIANO, Arnaldo. Time in ancient history. History and Theory, v. 6, Beiheft 6, p. 1-23, 1966, p. 10-12. Ver, entre outros, HESÍODO. O trabalho e os dias 109-201; PLATÃO. As leis 713c et seq; O político 271a-c; EURÍPEDES. Suplicantes 201 et seq; SÓFOCLES. Antígona 332 et seq. 68 CASSIRER. Antropología filosófica, op. cit., p. 153. Ver também PRESS, Gerald A. The development of the idea of history in Antiquity. Montreal; Kingston: McGill-Queen’s University Press, 1982, p. 7; LIMA VAZ. Escritos de Filosofia VI: ontologia e história, op. cit., p. 224.69 DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogo sobre la Historia. Trad. Ricardo Artola. Madrid: Alianza, 1988, p. 47.70 WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. In: Sociologia. Trad. Amélia Cohn e Gabriel Cohn. 7. ed. São Paulo:,Ática, 2003, p. 79.71 LE GOFF. História e memória, op. cit., p. 29.72 LUCIANO. Como se deve escrever a história 39. Cf. Obras III. Trad. Juan Zaragoza Botella. Madrid: Gredos, 1990, p. 399. Luciano afirma na sequência: “Porque, como decía, ésta es la única peculiaridad de la historia y sólo a la verdad se le deben ofrecer sacrificios si uno va a dedicarse a escribir historia, y debe desentenderse de todo lo demás.” Esta frase tornar-se-á um topos difundido na Modernidade e chegará a Ranke, 32 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSestando sujeito a ser acusado de mentiroso quando eivado de fantasia73, pois, como anunciava Píndaro, o tempo é o único que revela e prova a verdade74, logo, ela aparecerá, o historiador queira ou não. No entanto, não se esperava dele a objetividade rankeana. A história era, sobretudo, tradição, portanto, transmitida pelas gerações, inclusive por sucessivos historiadores, servindo de base para o historiador do presente escrever a sua história. Ele deveria ser capaz de julgar as informações legadas, contrastar com o erro, a fábula, a ficção ou mesmo a excessiva credulidade, e, assim, proclamar a sua verdade, negada aos demais75. Não havia plena objetividade, havia verossimilhança. A historiografia jamais conseguirá ser “antípoda da ficção”76, faltando-lhe reconhecer que “não existe qualquer análise científica puramente ‘objetiva’ da vida cultural”77, que “o humano escapa à razão físico-matemática como a água por uma peneira”78. Em suma, a história, para os antigos, era aquilo que sempre foi, ainda que hoje a maioria recuse, isto é, espécie de arte literária, pois “em qualquer discurso histórico exist[e] uma parte de lirismo, que deve ser encontrada, e que inclusive é necessária”79. Já eram os poetas repositórios de tradição80. Também o será o orador-historiador. Reconhecer a história como arte, como queriam os romanos, não é inferiorizá-la. Ela permanece como “um órgão do conhecimento de nós mesmos, um instrumento indispensável para construir nosso universo humano”81. Se a história é “a ciência do passado”, no século XIX, para então se tornar o preceito de acessar “como as coisas foram realmente” (wie es eigentlich gewesen). Cf. RANKE, Leopold von. The secret of world history: selected writings on the art and Science of history. Ed. e trad. Roger Wines. New York: Fordham University Press, 1981, p. 58; PIRES, Francisco Murari. Ranke e Niebuhr: a apoteose tucidideana. Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 71-108, jan./jun. 2012, p. 77-79.73 LE GOFF. História e memória, op. cit., p. 30.74 PÍNDARO. Olímpicas X, 53-55.75 KELLEY. Faces of History, op. cit., p. 10.76 REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 18-19.77 WEBER. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais, op. cit., p. 87.78 ORTEGA Y GASSET. História como sistema. Mirabeau ou o político, op. cit., p. 36.79 DUBY; LARDREAU. Diálogo sobre la Historia, op. cit., p. 48; 45.80 NICOLAI, Roberto. The place of history in Ancient World. In: MARINCOLA, John (ed.). A companion to Greek and Roman historiography. Malden, Oxford, Victoria: Blackwell, 2007, 2 v., p. 18.81 CASSIRER. Antropología filosófica, op. cit., p. 178. | 33 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSé sob “a condição de saber que este passado se torna objeto da história, por uma reconstrução incessante reposta em causa”82. Portanto, como um fazer e refazer, a escrita da história é ação, que não pode deixar de contar com tudo aquilo que faz do sujeito um conhecedor da história, que por fim se propõe a registrá-la. Ela é “interesse pela orientação da práxis da vida [que] se dirige ao passado: rememoramos para compreender a vida presente”83. Temos, então, o homem efetivamente como ser histórico, que não é aquele que acumula experiências mecanicamente, e sim aquele que toma consciência do passado84. O que identificaremos em Cícero é uma preliminar investida para harmonizar o historiador e o filósofo conforme a índole que então apresentavam: o orador, como historiador, é também imbuído de filosofia, que é conditio sine qua non dos preceitos da história, sem a qual sequer poderiam ser formulados. E todas essas são faces do homem político, pois é tomando esses conhecimentos e habilidades que pode engajar-se plenamente com a res publica.Cícero não faz obra de historiografia, conquanto estabeleça preceitos para o desempenho dessa arte. Ao mesmo tempo, rejeita a pura especulação ao modo grego, porquanto desconectado da prática, que deve ser sempre o objetivo da teoria. Por isso, recorre à história para dar os fundamentos às suas reflexões. Quando passa a perquirir a melhor constituição, não pode aceitar uma resposta proveniente apenas da teoria, como entende terem procedido os pensadores áticos, entretanto, está certo de ser ela necessária. A decisão de conhecer a melhor forma de governo parte do contexto presente e tem por justificativa contribuir para solver as sucessivas crises políticas enfrentadas pelos romanos nas últimas décadas. O De re publica, então, assume o caráter de obra que, sem ser historiográfica, mas filosófica, não abre mão da história. Pelo contrário, ali a investigação começa pela história de Roma, contrastada com outras experiências políticas, como a dos atenienses e dos cartaginenses. No entanto, quando contrapomos esse texto ao De legibus, identificamos neste último a proposição de novas leis e instituições (ou a reforma de algumas já existentes). Ora, como a concepção ciceroniana de res publica assume a Roma 82 LE GOFF. História e memória, op. cit., p. 25.83 RÜSEN, Jörn. A história entre a modernidade e a pós-modernidade. História: questões e debates, Curitiba, v. 14, n. 26-27, p. 80-101, jan./dez. 1997, p. 83. Para Croce, isso faz a história ser sempre uma história contemporânea. Cf. CROCE, Benedetto. La storia come pensiero e come azione. 8. ed. Bari: Laterza, 1966, p. 11.84 DUBY; LARDREAU. Diálogo sobre la Historia, op. cit., p. 101.34 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOShistórica, mas mantém-se como um resultado teórico original? Como a res publica de Cícero é ideia, à luz de Platão, mas também história do maior dos povos? Reiteremos a distância pujante entre a res publica ciceroniana e a politeia ideal platônica, mencionada acima, decorrente precisamente da forte consideração da história por aquela, o que já foi constatado por abalizados intérpretes85. Partindo de suas instigações, queremos, então, indagar como é estruturado esse fator histórico nuclear ao contraste entre Cícero e Platão e, de certo modo, entre Roma e Grécia. Com efeito, a tensão entre o que podemos chamar de República histórica e república ideal, no esforço de diferenciação entre dois momentos tênues no interior do pensamento de um filosofo audaz, é mais complexa do que a grafia distinta sugere. Primeiro porque o quadro histórico de Roma traçado por Cícero não condiz plenamente com a história nos termos acessíveis pelo trabalho historiográfico sobre as fontes de época86. Segundo porque o exercício da eloquência pelo orador concede-lhe uma margem de liberdade para lidar com as informações sobre o passado que é estranha aos olhos de um historiador contemporâneo87. Terceiro porque os exempla têm função importante e versátil, assim como as figuras históricas usadas como interlocutores dos diálogos filosóficos. Em suma, a história da res publica assume em Cícero uma feição peculiar, da qual não podemos descurar, e somente pode fazer sentido se colocada sob o prisma da filosofia e da eloquência.Algumas leituras tendem a ver no Arpinata, assim como em outros nomes, em diferentes épocas, o interesse pela história como “a busca de um refúgio contra o que vai mal”, mas esse despertar também pode “significar uma vontade de luta, uma ligação ativa”88. De fato, o relato da história revela que a tomada de consciência pelo homem de,seu destino histórico é acompanhada pelo esforço de compreender o passado89. Também assim o homem greco-85 SALGADO. O humanismo de Cícero, op. cit., p. 171; D’ORS, Álvaro. Introducción. In: CÍCERO. Las leyes. Trad. Álvaro D’Ors. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1953, p. 20-21; ATKINS, Jed. W. Cicero on politics and the limits of reason: The Republic and Laws. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 56-61.86 FOX. Cicero’s Philosophy of History, op. cit., p. 62; 98; 101.87 CÍCERO. De or. II, 62; RAMBAUD, Michel. Cicéron et l’histoire romaine. Paris: Les Belles Lettres, 1953, p. 13.88 CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores. Trad. Marcos Antonio da Silva. São Paulo: Ática, 1995, p. 23.89 CHÂTELET. El nacimiento de la historia, op. cit., p. 32. | 35 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSromano encontra auxílio para o presente e para o futuro que, embora incerto e diferente, produzirá situações reconhecíveis caso se saiba o outrora ocorrido90. Por isso a historiografia antiga é chamada “pragmática”: atém-se ao lado terreno ou humano dos fatos e, especialmente, aos negócios políticos, propiciando reflexões e alertas sobre os movimentos das constituições91. Em virtude disso, bem aconselhava Aristóteles que os líderes políticos deveriam ampliar suas experiências por meio da leitura de livros sobre viagens e história92. Os juristas também refletiam esse espírito, tomando por objeto os vestígios das ações preservadas nos antigos costumes, leis e instituições, o que os fazia ser perenes estudantes das fundações de Roma93: o principium é a parte mais importante de qualquer coisa, dizia Gaio94. E como o bom direito é disputa constante nos palcos dos fóruns, sendo a retórica conclamada a dar-lhe forma, a história, nesse contexto, “não é meramente uma lição a ser aprendida, mas também um argumento a ser desenvolvido, não meramente um legado a ser recebido, mas também uma guerra a ser travada — e la lutte continue”95. Quer dizer, a história é um legado, mas sua recepção é sempre uma luta: “a herança não é jamais dada, é sempre uma tarefa”96. Portanto, a história é ação e, como tal, política e direito, central na vida ativa humana97. A ação é empenhada nos esforços de fundação e preservação de corpos políticos, criando a condição para a lembrança e para a história. Por conseguinte, ação e discurso estão em estreita relação, pois, pelas palavras, a ação é humanamente revelada, “o autor se identifica, anuncia o que fez, faz e pretende fazer” e, embora “as histórias sejam resultado inevitável da ação”, é o narrador que percebe e “faz” a história98. E, assim, a narração torna o 90 MOMIGLIANO, Arnaldo. Tradition and the classical historian. History and Theory, n. 3, v. 11, p. 279-293, 1972, p. 291; LUCIANO. Como se deve escrever a história 40.91 CROCE, Benedetto. Teoria e storia della storiografia. 2. ed. Bari: Laterza, 1920, p. 180; POLÍBIO. História IX, 1.92 ARISTÓTELES. Retórica 1360a 33-37. Cf. The complete works of Aristotle, v. 2, op. cit., p. 2162-2163.93 KELLEY. Faces of History, op. cit., p. 49.94 GAIO. Digesta I, 2, 1: “et certe cuiusque rei potissima pars principium est”.95 KELLEY. Faces of History, op. cit., p. 11.96 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 78.97 ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 15.98 Ibid., p. 191; 205.36 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOStempo um tempo humano99. Como, desde as suas origens, os historiadores compartilhavam com os sofistas o objetivo de transmitir conhecimentos úteis para a vida cívica, com Aristóteles classificando a história como parte da política100, é patente que a eloquência tem um papel a cumprir em relação à história: Cícero será o responsável por evidenciar e desenvolver essa conexão. Ele introduz importantes bases teóricas da historiografia, ungidas de fundamentos filosóficos. A história é, então, explicitamente aproximada da retórica e da filosofia, situando o historiador como orador, encarnação do melhor homem político possível. Cidadão e filósofo, o rector é o único capaz de compreender os movimentos de transformação das constituições e, assim, escrever a história. Ao mesmo tempo, ele é princeps, o primeiro cidadão, sábio e prudente que, ciente das degenerações das formas políticas, pode contribuir para evitar o declínio da res publica. Portanto, o homem é posicionado por Cícero como a origem das causas e dos efeitos dos fatos, afastando a fortuna e a casualidade, agora partes do segundo plano101. Cumpre ao orador perpetuar pela eternidade os feitos dos grandes atores políticos, assim elevando o status da história para além de mero artifício retórico. Assim fará o próprio Cícero. Considerando que, para um romano, res gerere era mais importante do que res gestae scribere102, nosso autor tinha à frente um indiscutível desafio. Como veremos, estava a dar uma contribuição determinante para a formação do homem e, com ele, da consciência histórica, da Antiguidade em diante. Essa consciência experimenta-se como tal enquanto se faz “consciência historiadora”: é no exercício de narrar a história que o homem começa a tomar consciência de sua condição de historicidade103. Ao chamar a eloquência e a filosofia para esse ofício, a consciência histórica dilata-se. O homem torna-se consciente de que cada “passo que dá para a frente tem na pegada anterior a sua condição de possibilidade”104. Para além de apanhado de fatos, a 99 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Trad. Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1994, t. I, p. 15.100 NICOLAI. The place of history in Ancient World, op. cit., p. 17. Cf. ARISTÓTELES. Retórica I, 5, 1360a.101 DALPIAN, Laurindo. Orientação filosófica da historiografia romana. Vidya, Santa Maria, v. 19, n. 33, p. 201-214, jan./jun. 2000, p. 203.102 SCAVO, Rosanna. Storia della storiografia dall’eta arcaica all’alto medioevo. Bari: Levante, 1995, p. 5.103 LIMA VAZ. Escritos de Filosofia VI: ontologia e história, op. cit., p. 223.104 CATROGA. Memória, história e historiografia, op. cit., p. 7. | 37 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOShistória revela-se como forma de autoconhecimento105: encontramos nela os fundamentos do homem e de todo o humano. Por conseguinte, também do direito e da política. Impossível não ecoar na ideia de res publica ciceroniana.Em conclusão, as investigações registradas neste livro têm evidente caráter histórico-filosófico, adotado conscientemente à luz da própria natureza do problema eleito. Nosso objetivo é reconstruir o modo como a história exerce um papel de fundamentação e legitimação da res publica romana em Marco Túlio Cícero, e a hipótese suscitada perpassa a atuação do orador também como historiador e filósofo. Desde o início, o horizonte de pesquisa exigiu abordar seus campos primários – política, direito e cultura – em sua historicidade constitutiva, o que requer, outrossim, uma articulação filosófica, pela nítida verve especulativa da empreitada. Para tanto, compusemos este trabalho em duas partes.A Parte I começa situando nosso autor no interior do movimento de reflexão política da Antiguidade, centrada na busca pela melhor forma de governo. Tais debates avançam para o reconhecimento da primazia da constituição mista, o que se revelará possível somente pela gradual admissão do fator histórico. Com efeito, a história, como mestra da vida, ensina, pela experiência dos antepassados, os acertos e os erros na elaboração da configuração do poder na cidade. As formas puras, apesar das qualidades intrínsecas, também são dotadas de defeitos, dando origem a formas degeneradas. A solução será a proposição de um tipo de constituição equalizador dos elementos,positivos e negativos. No encalço do cônsul, acompanhamos o desvelamento das transformações das formas de governo em meio aos prolegômenos à história de Roma, quando traz a lume indícios da formação da melhor constituição mista por ação do povo romano no tempo. Na sequência, avançaremos sobre a estrutura institucional e as categorias político-jurídicas fundamentais dessa constituição, como a aequabilitas e a libertas. Nesse ínterim, a identificação dos pressupostos da res publica leva-nos a reconstruir o esboço ciceroniano de um projeto original que conjuga filosofia e história.Se nessa primeira etapa traçaremos os caracteres gerais da ideia de res publica de Cícero, situando-a na tradição política grega e na história político-105 CASSIRER. Antropología filosófica, op. cit., p. 164.38 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSjurídica de Roma, na Parte II nos aprofundaremos na compreensão de alguns desses aspectos, com ênfase nos fundamentos da ideia de res publica. Em um primeiro momento, retomaremos o problema da natureza para firmá-la como substrato do direito e da política, ao enfrentarmos o dilema da lei humana que, para ser verdadeira e justa, deve estar em conformidade com os princípios decorrentes da lei natural, ao passo que, para esse mesmo objetivo, deve considerar o quadro histórico-cultural do povo à qual se destina. Posteriormente, partindo do papel que o homem político, como rector ou princeps, deve exercer para a preservação do equilíbrio e da estabilidade constitucional, agora tomado como sábio e como cidadão, investigaremos a eloquência, enquanto oratória e retórica, como instrumento privilegiado da vida pública, a fornecer ao homem romano bases filosóficas e intelectuais indispensáveis a uma boa condução dos rumos constitucionais. Nesse cenário, exsurge a humanitas ciceroniana, resultado de um delicado processo de união entre as culturas romana e grega, no qual a filosofia vem em auxílio da tradição, como caminho de esperança para o declínio moral e político de Roma. O cume do trajeto acima sumarizado é a história. Organizada e compreendida por um homem introduzido na filosofia e na práxis político-jurídica, via eloquência, ela é empenhada como elemento de legitimação de um projeto de res publica. A constituição ciceroniana revela-se mais do que mera elaboração teórica: é ideia que nasce da história e nela se realiza.Essa nossa tentativa de explorar as relações entre política, direito, história, filosofia e eloquência no seio da res publica de Cícero integra um longo rol de trabalhos concebidos nas sendas acadêmicas estrangeiras. No entanto, salvo casos pontuais106, tendem a ser esparsos e fragmentados mesmo entre os estudiosos do Arpitana, em geral carentes de conclusões mais incisivas e, em definitivo, fogem do prisma explanativo de uma ideia filosófica retoricamente arquitetada, como pretendemos. Não bastasse, em língua portuguesa e, notadamente, no plano editorial brasileiro, são escassas as obras dedicadas ao cônsul romano107. Excepcionam-se algumas 106 Por exemplo, duas obras de épocas distintas: o clássico estudo de Michel Rambaud e o recente ensaio de Matthew Fox (vide Referências bibliográficas). Desvelam, portanto, a perenidade do interesse nessas conexões.107 Dentre elas, destaca-se a tese do Padre Milton Valente, defendida na França e | 39 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdissertações e teses defendidas no âmbito das Letras Clássicas, da História e da Filosofia, que, entretanto, não encontram pares na Filosofia do Direito e do Estado. Diante disso, o presente livro não pôde furtar-se de assumir uma dupla missão: investigar um problema de relevo significativo para o direito e a política – bem como para aqueloutros citados – e propor-se ao leitor brasileiro como introdução ao pensamento político-jurídico ciceroniano. Decerto, lançar-se em uma empreitada como essa poderia revelar-se uma ambição imoderada. Porém, restamos satisfeitos por termos conseguido jogar algumas novas luzes em velhos problemas, colocando-os à disposição de espíritos aventureiros que por eles possam nutrir curiosidade. Não bastasse, nosso compromisso com esses objetivos permaneceu ativo mesmo após o advento da dissertação originária, tendo engendrado novos frutos108. Por derradeiro, vale salientar o modo como operacionalizamos as fontes primárias. É notória a escassez de traduções das obras ciceronianas para o português, existindo apenas versões esparsas, que nem sempre primam pelo rigor. De todo modo, mesmo se disponíveis, as traduções não substituiriam os textos latinos. Em vista dessas limitações, optamos por consultar os originais em latim, acompanhados de edições em idiomas modernos, mas referenciando apenas o escrito clássico. Quando objeto de citação direta, referenciamos também a tradução, pois nos abstivemos da tarefa hercúlea de apor traduções nossas a todas as passagens de Cícero – e de outros autores antigos – utilizadas. Embora tenhamos vertido alguns trechos por nossa iniciativa, preferimos empregar as traduções à mão, em português, espanhol, italiano ou inglês, conforme a melhor versão, ocasionalmente introduzindo adaptações. Ao contrário das citações diretas da bibliografia premiada pela Academia Francesa de Letras como melhor obra filosófica de 1958. Apesar da grande repercussão da láurea no Brasil, o livro somente conseguiu ser editado aqui em 1984, fato que comprova a nossa leitura do desleixo brasileiro para com Cícero. 108 Entre outros, SANTOS, Igor Moraes. A humanitas de Cícero: ensaio sobre cultura, formação humana e tolerância na República romana. In: SALGADO, Karine et al (orgs.). Dignidade e tolerância. Belo Horizonte: Initia Via, 2019; SANTOS, Igor Moraes; MARZANO, Rodrigo. Três conceitos para a paz em Cícero: concordia, otium e bellum entre o direito e a humanitas. In: COSTA, Admar et al (orgs.). Filosofia Antiga. São Paulo: ANPOF, 2019; SANTOS, Igor Moraes. A constituição mista em Aristóteles: as formas de governo, a história e a perfeição nos limites do possível. Revista de Ciências do Estado, Belo Horizonte, v. 5, n. 1, p. 1-50, 2020.40 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOScomplementar, em relação às referências primárias, especialmente as obras de Cícero, quando transcritas em idioma estrangeiro, foram mantidas sem tradução em português, a fim de evitar perda de sentido provocada por dupla tradução. O mesmo é válido para outros textos clássicos. Para referenciar os escritos do Arpinata, valemo-nos das abreviações do The Oxford Classical Dictionary, com adaptações109. Outras obras latinas foram mencionadas em seus títulos originais, enquanto as obras gregas, com os títulos em português, para conforto do leitor.109 HORNBLOWER, Simon; SPAWFORTH, Antony (ed.). The Oxford Classical Dictionary. 4. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. xxxii-xxxiii: Acad. (Academicae quaestiones); Acad. post. (Academica posteriora); Acad. Pr. (Academica Priora); Ad Brut. (Epistulae ad Brutum); Amic. (De amicitia); Arch. (Pro Archia); Att. (Epistulae ad Atticum); Balb. (Pro Balbo); Brut. (Brutus or De Claris Oratoribus); Caecin. (Pro Caecina); Cael. (Pro Caelio); Cat. (In Catilinam); Clu. (Pro Cluentio); Corn. (Pro Cornelio de maiestate); Deiot. (Pro rege Deiotaro); De Inv. (De inventione rhetorica); De or. (De oratore); Div. (De divinatione); Div. Caec. (Divinatio in Caecilium); Dom. (De domo sua); Fam. (Epistulae ad familiares); Fat. (De fato); Fin. (De finibus bonorum et malorum); Flac. (Pro Flacco); Font. (Pro Fonteio); Har. resp. (De haruspicum responsis); Leg. (De legibus); Leg. agr. (De lege agraria); Leg. Man. (Pro lege Manilia ou De imperio Cn. Pompeii); Lig. (Pro Ligario); Marcell. (Pro Marcello); Mil. (Pro Milone); Mur. (Pro Murena); Nat. D. (De natura deorum); Off. (De officiis); Orat. (Orator ad M. Brutum); Parad. stoic. (Paradoxa stoicorum); Part. or. (Partitiones,oratoriae); Phil. (Orationes Philippicae); Pis. (In Pisonem); Planc. (Pro Plancio); Prov. cons. (De provinciis consularibus); QFr. (Epistulae ad Quintum fratrem); QRosc. (Pro Roscio comoedo); Quinct. (Pro Quinctio); Rab. Perd. (Pro Rabirio Perduellionis Reo); Rab. Post. (Pro Rabirio Postumo); Red. pop. (Post reditum ad populum); Red. quir. (Post reditum ad quirites); Red. sen. (Post reditum in senatu); Rep. (De republica); Rosc. Am. (Pro Sexto Roscio Amerino); Scaur. (Pro Scauro); Sen. (De senectute); Sest. (Pro Sestio); Sull. (Pro Sulla); Top. (Topica); Tusc. (Tusculanae disputationes); Vat. (In Vatinium); Verr. (In Verrem). | 41 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS Parte IA ideia de res publica:Política e Direito em Cícero42 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSCAPÍTULO 1AS FORMAS DE GOVERNO: da história à tipologia políticaFor forms of government let fools contest;Whate’er is best administered is best 110Uma das discussões mais importantes do pensamento político gira em torno da melhor forma de governo111. Recorrente em toda a sua história, desenvolveu-se concomitante a ela e tornou-se um leitmotiv112. A Grécia, fundadora da reflexão sobre o poder113 e de noções como justiça e liberdade114, articula essas especulações ao redor da constituição, isto é, do conjunto de instituições, normas, costumes, tradições e práticas estruturantes da organização sociocultural. Trata-se, portanto, de algo além do modo de manifestação institucionalizada do poder na sociedade e da relação entre governantes e governados. O que a Antiguidade entendia por forma de governo (politeia) inclui o status político interno, as relações de decisão, força e ação vigentes em uma comunidade. Em suma, é a concreção “de um estilo de vida representativo de uma situação cultural” enquanto uma configuração coletiva original115. As teorias das formas de governo contam com uma face descritiva, a classificação dos tipos de constituição política manifestados na experiência 110 POPE, Alexander. An essay on man III, 303-304. Cf. The major works. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 298: “Por formas de governo, deixe os tolos contestarem;/A que for melhor administrada é melhor”.111 LEVI, Lucio. Governo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. Carmen C. Varriale et al. 11. ed. Brasília: Editora UnB, 1998, p. 553.112 SALDANHA, Nelson. As formas de governo e o ponto de vista histórico. Belo Horizonte: Revista Brasileira de Estudos Políticos; Universidade de Minas Gerais, 1960, p. 35.113 Sobre o sentido de Política, ver BOBBIO, Norberto. Política. In: BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. Dicionário de Política, op. cit., p. 954. Para a Antiguidade, FINLEY, M. I. Politics in the Ancient World. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 51-52 e as reflexões de MEIER, Christian. The Greek Discovery of Politics. Trad. David McLintock. Cambridge, London: Harvard University Press, 1990, p. 13-25.114 SABINE, George H. Historia de la teoría política. Trad. Vicente Herrero. 3. ed. México: FCE, 1994, p. 31.115 SALDANHA. As formas de governo e o ponto de vista histórico, op. cit., p. 59, que lembra a correspondência entre formas de saber e organizações sociopolíticas de SCHELER, Max. Sociología del saber. s.l.: elaleph.com, 2000 (versão digital), p. 77. | 43 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOShistórica, e outro prescritivo, a qualificação de formas boas e más, melhores e piores, segundo uma hierarquia. Fato e juízo de valor são indissociáveis, de modo que, como produto histórico-cultural do tempo corrente, cada teoria propõe caminhos melhores para a realidade116. Assim já urdiram os gregos.1.1. Pilares da tradição política gregaNa primeira metade do século V a.C., Píndaro entoava três grandes formas constitucionais. Se o governo dos “sábios” era uma esperança, a tirania e a “multidão violenta” soavam temores reais117. De fato, as referências arcaicas de Alceu de Mitilene, Ésquilo, Sólon, Teógnis e Sófocles118 focalizavam a forma despótica, mas, naquele momento, “tirania” era termo empregado em sentido tanto negativo quanto positivo, frequentemente indistinto da monarquia. Do outro lado estava a democracia, lida sob luz desfavorável, como governo/poder (kratos, na acepção de intemperado, excessivo, violento119) dos muitos ou da multidão, preferindo-se isegoria ou isonomia. Quando o termo demokratia foi consolidado120, apresentou-se como ideia madura reunindo demos e kratos121, ambiguidade semântica aproveitada amiúde nos debates teóricos122. De Sólon até Péricles123, a democracia deixa 116 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Trad. Sérgio Bath. 5. ed. Brasília: Ed. UnB, 1988, p. 33-35.117 PÍNDARO. Pítica II, 86-88 (trad. GALLO, Rodrigo Fernando. Heródoto e a teorias das formas de governo: o debate constitucional persa. 167f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 66). Ver ARQUÍLOCO, frag. 19W (cf. MENEZES, Luiz Maurício Bentim da Rocha. Nova interpretação da passagem 359d da República de Platão. Kriterion, Belo Horizonte, v. 53, n. 125, jun. 2012). Sobre a datação, BOWRA, C. M. Pindar, Pythian II. Harvard Studies in Classical Philology, v. 48, p. 1-28, 1937.118 URE, P. N. The origin of tyranny. Cambridge: Cambridge University Press, 1922, p. 7-10; GALLO, Heródoto e a teorias das formas de governo, op. cit., p. 73.119 LIDELL, Henry George; SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1940.120 Ver HERÓDOTO. História VI, 131.121 MUSTI, Domenico. Demokratía: origini di un’idea. 3. ed. Roma; Bari: Laterza, 2006, cap. I.122 FINLEY, M. I. Democracia antiga e moderna. Trad. Waldéa Barcellos e Sandra Bedran. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 26; Id. Politics in the Ancient World, op. cit., p. 1-2; CANFORA, Luciano. El ciudadano. In: VERNANT, Jean-Pierre (ed.). El hombre griego. Trad. Pedro Bádenas de la Peña et al. Madrid: Alianza, 1995, p. 159.123 Sobre a história ateniense de suas origens à instituição da democracia, perpassando as diferentes instituições e transformações, remetemos o leitor ao nosso SANTOS, 44 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSde ser citada apenas como forma má e passa a ser associada com liberdade, enquanto oligarquia ganha tons tirânicos124, firmando uma prolífera oposição de modelos constitucionais125.Em Heródoto encontramos o primeiro registro significativo de uma tipologia no diálogo entre três persas sobre a melhor forma a ser adotada após a morte de Cambises. Otanes critica a monarquia e defende a instituição de um governo do povo; Megabises exalta a oligarquia e, por fim, Dario conclui pelos benefícios da monarquia126. Ao evidenciar as limitações de cada constituição e o sucesso da monarquia na Pérsia127, ecoa os efeitos da transição de décadas de tirania de Psístrato e seus filhos para a constituição de Clístenes, pois reafirma a servidão dos persas submetidos a um déspota em face da liberdade, autonomia e isonomia dos atenienses128. A inferiorização do bárbaro, vencido nas Guerras Médicas129, permite aos gregos verem a Igor Moraes. O homem e a cidade na Grécia Antiga: relações entre o cidadão e a polis nas instituições políticas e no pensamento helênico clássico. 2015. 86f. Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. Ademais, são obras relevantes sobre o tema que ora consultamos e recomendamos: GLOTZ, Gustave. La cité grecque. 2. ed. Paris: Albin Michel, 1953; MOSSÉ, Claude. Atenas: a história de uma democracia. Trad. João Batista da Costa. 3. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997; EHRENBERG, Victor. The Greek state. New York: Barnes & Noble, 1960; VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento,grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. 12. ed. Rio de Janeiro: Difel, 200; MACDOWELL, Douglas M. The law in classical Athens. Ithaca: Cornell University Press, 1986; LEÃO, Delfim Ferreira. Sólon: ética e política. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001; BORGES, Guilherme Roman. O direito constitutivo: um resgate greco-clássico do Nóminon Éthos como Eutaksía Nómini e Dikastikí Áskisis. 313f. Tese (Doutorado em Filosofia e Teoria Geral do Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011; HIDALGO DE LA VEGA, María José et al. Historia de Grecia Antigua. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1998. Entre as fontes clássicas, consultamos ARISTÓTELES. Constituição de Atenas; PLUTARCO. Vida de Sólon, Id. Vida de Péricles.124 CANFORA. El ciudadano, op. cit., p. 159-161; TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso II, 37.125 Sobre a oposição entre tirania e democracia em Atenas e em outras poleis, ver McGLEW, James F. Tyranny and political culture in Ancient Greece. Ithaca: Cornell University Press, 1996. Acerca da expansão da democracia para outras poleis, comparativamente a formas de governo diversas, ver TEEGARDEN, David A. Death to Tyrants! Ancient Greek democracy and the struggle against tyranny. Princeton: Princeton University Press, 2014.126 HERÓDOTO. História III, 80-82.127 BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 41-43; COSTA, Pietro. Poucos, muitos, todos: lições de história da democracia. Trad. Luiz Ernani Fritoli. Curitiba: Editora UFPR, 2012, p. 17-18.128 GALLO. Heródoto e a teorias das formas de governo, op. cit., p. 66-67.129 GRUEN, Erich S. Rethinking the other in antiquity. Princeton: Princeton University Press, 2011, p. 1 e 22; GALLO. Heródoto e a teorias das formas de governo, op. cit., p. 67-68. Sobre a visão de Heródoto acerca da cultura e história persas, ver FLOWER, Michael. | 45 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSsi próprios, construírem a sua identidade130. Porém, as formas de governo ruins, louvadas no diálogo, são comuns entre as poleis de então, revelando uma tradição política grega preexistente marcada pela tríade “um, poucos e muitos”.Tucídides, sob efeito do conflito entre Atenas e Esparta131, interpreta a democracia como constituição na qual todos contribuem, com harmonia entre liberdades e obrigações públicas. O governo de Péricles fora o auge da grandeza da cidade132, mas a derrota na Guerra do Peloponeso insuflou opositores da democracia a saírem às claras, cogitando uma oligarquia para salvar a cidade133. Por isso, a resistência exaltava o valor da democracia. Eurípedes, n’As suplicantes, traz Teseu, herói-fundador de Atenas, afirmando a um estrangeiro atônito ser livre aquela polis, mediante magistraturas anuais alternadas e igualdade de direitos134. Isócrates, por sua vez, recusa a caracterização da democracia pela liberdade como desenfreio e pela felicidade como fazer o que se quer; um bom governo critica essas práticas, é imparcial e justo, segundo os cidadãos mais capazes e dispostos a governar da melhor maneira e com mais justiça135. Mas era evidente que os sucessores de Péricles falharam em controlar os caprichos do povo, que conferia poderes a figuras ambiciosas136. O líder democrático obtivera uma invulgar autoridade, de modo que “Atenas, embora fosse no nome uma democracia, de fato veio a ser governada pelo primeiro de seus cidadãos”137. Agora, muitos defendiam Herodotus and Persia. In: DEWALD, Carolyn; MARINCOLA, John. The Cambridge Companion to Herodotus. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 274-289.130 HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Nova edição revista e aumentada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 328-330; ROY, C. Sydnor. The constitutional debate: Herodotus’ exploration of good government. Histos, v. 6, p. 298-320, dez. 2012, p. 299; PROVENCAL, Vernon L. Sophist kings: Persians as other in Herodotus. London; New York: Bloomsbury, 2015.131 RANKE, Leopold von. Heródoto e Tucídides. Trad. Francisco Murari Pires. História da historiografia, Ouro Preto, n. 6, p. 252-259, mar. 2011.132 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso II, 65.133 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso VIII, 47; SAYAS, Juan J. Ideas políticas de Tucídides. Revista de estudios políticos, Madrid, n. 185, p. 45-64, 1972, p. 48.134 EURÍPIDES. As suplicantes 403-447. Cf. Tragédias II. Trad. Jose Luis Calvo Martínez. Madrid: Gredos, 1978, p. 42-45.135 ISÓCRATES. Panatenaico 130-138.136 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso II, 65; III, 36; SAYAS. Ideas políticas de Tucídides, op. cit., p. 57-60.137 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso II, 65. Cf. História da Guerra do 46 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSuma elite intelectual para reaver o equilíbrio social138. Com a ascensão do conselho dos Quatrocentos, posteriormente depostos, o poder foi entregue aos Cinco Mil. Tucídides identifica este governo de 411 a.C. como uma constituição mista, o primeiro registro historiográfico de uma concepção que mescla elementos originários de três tipos simples:Nos primeiros tempos desse período os atenienses parecem ter sido melhor governados do que em qualquer outra época, pelo menos no meu tempo; com efeito, houve um equilíbrio razoável entre a aristocracia e o povo, e isto foi um fato preponde-rante na recuperação da cidade, então em péssima situação.139 Com a ameaça representada pelos macedônicos, a tirania passa a ser, definitivamente, espécie negativa140. Isócrates reitera a servilidade dos bárbaros, incapazes de viver em igualdade como os gregos, que são livres141. Para Demóstenes, conclamando o povo ateniense à luta, a justificativa da guerra é a restauração dessa liberdade142. As cidades democráticas devem estar sempre atentas às poleis vizinhas que instituam formas de governos distintas. O poder absoluto é objeto de desconfiança. Deve-se lutar, como os olíntios, para evitar a destruição e escravização143. Segundo Ésquines, enquanto a tirania e a oligarquia são formas inequânimes, a democracia é regida por leis e baseada na igualdade, sendo cada cidadão seu guardião144. As teorias das formas de governo agora indicam méritos e deméritos de Peloponeso. Trad. Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília: Editora UnB; Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, p. 111; JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 466.138 SAYAS. Ideas políticas de Tucídides, op. cit., p. 57-59.139 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso VIII, 97. Cf. História..., op. cit., p. 430.140 ROCHER, Laura Sancho. Las fronteras de la política. La vida política amenazada según Isócrates y Demóstenes. Gerión, Madrid, v. 20, n. 1, p. 231-253, 2002, p. 232.141 FELISBINO, Luciane; FRIGHETTO, Renan. Isócrates e a busca pela união das póleis no século IV a.C. NEARCO, a. VIII, n. 2, p. 88-97, 2015, p. 95. Ver ISÓCRATES. Nicocles 15-26.142 DEMÓSTENES. Discurso sobre a liberdade dos rodianos 17-21.143 DEMÓSTENES. Olintiano I, 5.144 ÉSQUINES. Contra Timarco 4-5; Contra Ctesifonte 6-7. | 47 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOScada modalidade e valorizam o comando político racional para o interesse comum145. Mas são os filósofos que elevarão a constituição mista (mitkte ou memigmene politeia) ao posto de melhor.Na República, Platão apresenta a constituição perfeita, uma politeia que nunca existiu no mundo sensível em que vivemos, mas é realidade enquanto ideia, modelo perfeito de organização política, passível de ser contemplado pelo filósofo146. Os homens devem se inspirar na ideia, agir para tentar instituir essa república na realidade humana imperfeita, embora jamais consigam concretizá-la plenamente em razão das limitações dessa mesma imperfeição,,o que voltaremos a discutir no presente trabalho:— [...] creio bem que não se encontra em parte alguma da terra.— Mas talvez haja um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e, contemplando-a, fundar uma para si mesmo. De resto, nada importa que a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas suas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele pautará o seu comportamento.147Todas as constituições existentes no mundo humano são corrompidas. Se “há uma só forma da virtude, e infinitas do vício”148, também muitas são as formas de governo más e uma única perfeita. E tal é assim “porque não se ajustam à constituição ideal”, a “única forma boa ultrapassa a história – pelo menos até o presente”149. Nenhuma politeia conseguiu proporcionar 145 HAHM, David E. The mixed constitution in Greek thought. In: BALOT, Ryan K. (ed.). A companion to Greek and Roman political thought. West Sussex: Blackwell, 2009, p. 179.146 LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Contemplação e dialética nos diálogos platônicos. Trad. Juvenal Savian Filho. São Paulo: Loyola, 2012, p. 199-203: Platão, como herdeiro de Sócrates, transpôs o problema da “fundamentação do bem da ação moral para o plano metafísico, definindo o Bem como realidade suprema, princípio e fim do mundo ideal e, como tal, norma e termo da ação humana”. E, na República, esforça-se “para fundar no plano metafísico essa exigência do Bem absoluto.”147 PLATÃO. República 592a-b. Cf. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 447.148 PLATÃO. República 445c. Cf. A República, op. cit., p. 207.149 BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 46. Sobre a composição da politeia 48 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSas condições para o homem “atingir a perfeição moral e realizar o seu verdadeiro destino: o Bem”150. Para tanto, seria necessário que se destacassem um ou mais homens por sua sabedoria, o que implica um tom monárquico ou aristocrático151. Quando confrontadas com o ideal, as constituições concretas revelam-se “fenômenos de enfermidade e degenerescência”152, podendo ser classificadas por seus vícios em uma escala descendente segundo o grau de imperfeição153: timocracia, oligarquia, democracia e tirania, listadas da menos pior à pior154.Em relação à democracia, em O político, ela é apresentada com apenas um único nome para sua forma pura e viciosa. A distinção residiria em estar em conformidade ou não com as leis. A primeira é a pior das formas boas, a segunda a melhor das más155. Na República, a liberdade desmesurada acarreta a desagregação em face da comunidade, conduzindo à escravidão156. Veremos argumentos críticos similares em Cícero. O tema basilar de Platão é a unidade entre comunidade e cidadão, ameaçada pela discórdia. Com efeito, o “espírito das constituições” é o ethos de cada tipo de homem. A transformação de uma forma, passando a outra, tem suas causas no interior do próprio homem, que muda sua “estrutura anímica”, similar ao que Cícero adotará157. Por isso a primazia do rei-filósofo, em quem a razão rege as partes da alma justamente, e platônica, PLATÃO. República 433a-435e; BRÉHIER, Émile. Historia de la Filosofia. Trad. Demetrio Náñez. 3. ed. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1948, t. I, p. 182-183.150 MONCADA, Luís Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1955, v. 1, p. 19. Para Jaeger, a república perfeita é “a superfície límpida na qual se projetará a imagem do homem justo”, no caminho para a sua descoberta, “descobrimos o Homem”. Cf. JAEGER. Paideia, op. cit., p. 929 e 974.151 PLATÃO. República 445d-e. Cf. A República, op. cit., p. 207-208.152 JAEGER. Paideia, op. cit., p. 926-927; PLATÃO. Górgias 464b-c. Cf. BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 51-52; VEGETTI, Mario. Um paradigma no céu: Platão político, de Aristóteles ao século XX. Trad. Maria da Graça Gomes de Pina. São Paulo: Annablume, 2010, p. 33.153 JAEGER. Paideia, op. cit., p. 925; BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 45-46: “Diante da degradação contínua da história, a solução só pode estar ‘fora’ da história, atingível por um processo de sublimação que representa uma mudança radical (a ponto de levantar a suspeita de que a história não é capaz de recebê-la e de suportá-la) com relação ao que acontece de fato no mundo.”154 PLATÃO. República 544c-565a. Em O político 291d-e, há uma tipologia nos moldes tradicionais. Em Memoráveis IV, 6, 12, Xenofonte, recorda a visão de Sócrates sobre as formas de governo.155 BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 54; PLATÃO. O político 291a-303a-b.156 PLATÃO. República 554a-557d.157 JAEGER. Paideia, op. cit., p. 929. | 49 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSfaz da melhor forma de governo aquela “de apenas um, de dois, ou de quando muito alguns”, reiterando a mistura de elementos constitucionais diversos158. Descrita a politeia ideal, Platão busca mediar a idealidade política com a realidade sensível em As Leis159. Nesta derradeira obra, a partir do exame de leis e instituições de diferentes poleis, Platão pretende descobrir o melhor legislador, encontrando-o no homem dedicado a assegurar a liberdade, a unidade e a racionalidade da cidade160. Para tanto, deve emitir leis destinadas a servirem de “veículo condutor da educação dos adultos nas virtudes cívicas”, algo ensaiado em Protágoras e agora ultimado161. A boa constituição une elementos monárquicos e democráticos, com a eliminação de seus defeitos162, exigência exemplificável no mundo sensível, vide a experiência ateniense de levar à escravidão por meio da “liberdade extrema”163. Por isso, ao ter em conta “a mais despótica das formas de governo e a mais livre”, e acompanhar o transcurso de cada uma delas, constata como tipo bom somente uma constituição mista, isto é, que reúna as qualidades e afaste os defeitos164.Outro é o caminho de Aristóteles. Para o Estagirita, a polis é a mais importante de todas as comunidades, pois objetiva a realização do maior dos bens, a vida boa, a eudaimonia165-166. Ela surge naturalmente e, do mesmo 158 PLATÃO. O político 292e-293e. Cf. Diálogos: O banquete. Fédon. Sofista. Político. Trad. José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Coleção Os pensadores), p. 249-250.159 REALE, Giovanni. Storia della filosofia antica. 6. ed. Milano: Vita e Pensiero, 1988, v. II, p. 332-333.160 PLATÃO. As leis 701d.161 PLATÃO. Protágoras 326c-d; Leis 722b-723e. JAEGER. Paideia, op. cit., p. 1301; BRÉHIER. Historia de la Filosofía, t. I, op. cit., p. 192.162 PLATÃO. As leis 693d-694a.163 PLATÃO. As leis 699e. Cf. Diálogos VIII: Leyes. Trad. Francisco Lisi. Madrid: Gredos, 1999, p. 342. 164 PLATÃO. As leis 701e. Vale assinalar que, em Menexeno 238b-239a, a constituição ateniense é interpretada como uma espécie de constituição mista. Mas este é um diálogo de autenticidade platônica questionada, além de ter forte tom irônico e ambíguo, o que dificulta a sua compreensão.165 ARISTÓTELES. Política I, 1, 1252a-b; Ética a Nicômaco I, 2, 1094b. Sobre as comunidades anteriores à polis, Política I, 2, 1252b; REALE, Giovanni. Introduzione a Aristotele. 2. ed. Roma; Bari: Laterza, 1977, p. 119-120.166 ARISTÓTELES. Política VII, 13, 1332a. Sobre eudaimonia, LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia IV: introdução à ética filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999, nota 24 da p. 118. Sobre as virtudes e a sabedoria, ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco II, 13, 1103a, 4-10; BARNES, Jonathan. Aristotle: a very short introduction. Oxford: Oxford 50 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmodo, o homem é, por natureza, um animal político, diverso porque o único a ter logos (razão e linguagem), que lhe permite conhecer e comunicar o justo e o injusto167. A vida boa, finalidade da cidade, é,também a finalidade do homem168. Mas cada polis pode assumir uma politeia distinta de acordo com diferentes fatores, que determinam o modo de ordenação das magistraturas com poder deliberativo supremo (kurios). Com efeito, o cidadão é definido justamente por sua participação nas atividades deliberativas169. Como recorda Laurenti, a polis é um pequeno cosmo porque ordenada, ordem que é a politeia, que imprime “ao ‘seu’ cidadão a ‘sua’ marca particular”170. E, inversamente, as comunidades em que consistem as cidades influenciam a respectiva constituição segundo sua própria natureza. Eis um governo para cada tipo de comunidade e de homem171. Aristóteles examina, então, as constituições, em sua variabilidade e desenvolvimento concreto, mas tendo em vista, em meio a essa pluralidade, aquilo que é próprio à natureza da polis. Isso enseja como tarefas a descrição e a classificação172. Desde logo, separa-as segundo como governam e o número University Press, 2000, p. 124-125; LIMA VAZ, Henrique C. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1988, p. 119-121; SALGADO, Joaquim Carlos. O espírito do Ocidente, ou a razão como medida. Cadernos de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 9, 2012. p. 8; SANTOS. O homem e a cidade na Grécia Antiga, op. cit., p. 56.167 ARISTÓTELES. Política I, 2, 1253a.168 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco I, 2, 1094b, 7-10; 1169b et seq; Política III, 13, 1284a; LIMA VAZ. Escritos de Filosofia II: ética e cultura, op. cit., p. 156; RICKEN, Friedo. O bem-viver em comunidade: a vida boa segundo Platão e Aristóteles. Trad. Inês Antônia Lohbauer. São Paulo: Loyola, 2008, p. 121; BARNES. Aristotle, op. cit., p. 128; REALE. Introduzione a Aristotele, op. cit., p. 119 e 126; VERGINIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles: physis, ethos, nomos. Trad. Constança Marcondes Cesar. São Paulo: Paulus, 1998, p. 155-156.169 ARISTÓTELES. Política III, 1, 1275a; REALE, Introduzione a Aristotele, op. cit., p. 122.170 LAURENTI. Renato. Introduzione alla Politica di Aristotele. Napoli: L’Officina Tipografica, 1992, p. 52 (tradução nossa). TAYLOR, C. C. W. Politics. In: BARNES, Jonathan (ed.). The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 233: A Política é uma continuação da Ética a Nicômaco (X, 10, 1181b, 12-23). A teoria política procura identificar quais formas de sociedade são mais ou menos capazes de conduzir à vida boa, explicando os defeitos das formas imperfeitas e sugerindo como remediá-los. Ver PHILIPPE, Marie-Dominique. Introdução à filosofia de Aristóteles. Trad. Gabriel Hibon. São Paulo: Paulus, 2002, p. 82. Sobre a Política como ciência e suas relações com a retórica, BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1998, p. 181-186.171 VILATTE, Sylvie. Espace et temps: La cité aristotélicienne de la Politique. Besançon: Annales Littéraires de l’Université de Besançon; Paris: Les Belles Lettres, 1995, p. 255.172 ARISTÓTELES. Política III, 15, 1286b 8 et seq; IV, 13, 1297b 16 et seq; BOBBIO. A | 51 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSde governantes173, identificando formas desviadas, da pior para a menos pior, quais sejam, tirania, oligarquia e democracia174, e formas boas, monarquia175, aristocracia176 e politeia (ou politia). Em todos os casos, Aristóteles verifica a existência empírica de variações das formas primárias177 e sua transformação com o tempo178, em decorrência de disputas pelo poder e da criação de regras distintas179. Por exemplo, a democracia evolui de um regime no qual todos os livres são cidadãos, mas dirigido pelas leis, a um regime no qual o poder do povo é máximo, a cidade é governada por decretos, sem ter mais lugar a lei, tornando-se demagogia, tirania dos muitos180. Similarmente, a aristocracia tem expressões históricas que combinam elementos de outras formas à virtude181. Em síntese, todas as manifestações políticas misturam aspectos dos tipos básicos. Esse caráter é assumido expressamente na última forma de governo boa, a politeia, traduzida como politia ou república, considerando a teoria das formas de governo, op. cit., p. 56.173 ARISTÓTELES. Política III, 6, 1279a.174 MAGALHÃES GOMES, Marcella Furtado de. O homem, a cidade e a lei: a dialética da virtude e do direito em Aristóteles. 436f. Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009, p. 423-427; ARISTÓTELES. Politica III, 8, 1279b 15; IV, 4, 1292a 30-37; IV, 5, 1292b 7-10; 10, 1295a 20-23; VILATTE. Espace et temps: La cité aristotélicienne de la Politique, op. cit., p. 254.175 Ibid., p. 429; ARISTÓTELES. Política III, 7, 1279a, 33; IV, 7, 1293b, 2-7; V, 14, 1313a, 4-9.176 ARISTÓTELES. Política III, 7, 1279a, 34 et seq. Também Política III, 15, 1286b, 3ss; IV, 7, 1293b, 2-13.177 MAGALHÃES GOMES. O homem, a cidade e a lei, op. cit., p. 423-424; ARISTÓTELES. Política III, 14-28, 1285a-b; IV, 10, 1295a, 9-16. Essa variação interna do tipo primário é chamado por Saldanha de regime. Cf. SALDANHA. As formas de governo e o ponto de vista histórico, op. cit., p. 35-40.178 ARISTÓTELES. Política III, 14, 1285b; IV, 5, 1292a-1293a; V, 10, 1313a; MAGALHÃES GOMES, O homem, a cidade e a lei, op. cit., p. 429-430; LAURENTI, Introduzione alla Politica di Aristotele, op. cit., p. 89; 97.179 MAGALHÃES GOMES. O homem, a cidade e a lei, op. cit., p. 424-425; ARISTÓTELES. Política III, 14, 1285b, 5-19, III, 14, 1285a, 35-40; III, 15, 1286b, 9-21.180 MAGALHÃES GOMES. O homem, a cidade e a lei, op. cit., p. 428-429; ARISTÓTELES. Política IV, 4-5, 1291b-1293a. Laurenti (Introduzione alla Politica di Aristotele, op. cit., p. 90-91) nota diferença entre os regimes democráticos do Livro IV, 4 e 6, e do Livro VI, 4. A democracia ateniense até os anos 320 a.C. é examinada em Constituição de Atenas. Sobre a sua visão da democracia grega, STRAUSS, Barry S. On Aristotle’s Critique of Athenian Democracy. In: LORD, Carnes; O’CONNOR, David K. (eds.). Essays on the Foundations of Aristotelian Political Science. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1991, p. 212-233.181 MAGALHÃES GOMES. O homem, a cidade e a lei, op. cit., p. 430; ARISTÓTELES. Política IV, 7, 1293b, 8-16.52 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSgeneralidade do termo que significa “constituição”182. É assim denominada porque comum a todos os cidadãos (politai)183, quer dizer, atribuído o poder aos que são nem muito ricos nem muito pobres, a “classe média”184. Origina-se da mistura de dois tipos não virtuosos, a oligarquia e a democracia185, união dos ricos e dos pobres que remedia o antagonismo ou a oposição (enantia)186 entre os grupos populacionais e assegura a paz social187. Uma vez mais, notemos que essa configuração também “é uma fórmula vazia, uma ideia abstrata que não corresponde, concretamente, a qualquer regime histórico do presente ou do passado”188. Em diferentes cidades ocorre a combinação de maneiras diversas entre elementos oligárquicos e democráticos189. A politia, ao pretender harmonizar liberdade e riqueza, fica a meio-termo das duas formas básicas, posição um tanto anômala, pois situada em plano diverso das demais constituições retas e imperfeitas190. Assim, é expressão clara da constituição mista em Aristóteles, permeada pela mediania característica de sua ética191. O equilíbrio proporcionado pela forma mista não é um fim em si, mas condição para a permanência das instituições políticas fundamentais. Para que a cidade seja uma comunidade apta a viabilizar a atualização das potencialidades humanas, requer estabilidade, isto é, uma estrutura capaz de protegê-la da dissolução192. É na vida comum que pode o homem alcançar 182 BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 57.183 LAURENTI. Introduzione alla Politica di Aristotele, op. cit., p. 95-96; ARISTÓTELES.,Política III, 7, 1279a.184 ARISTÓTELES. Política III, 17, 1288a, 15; IV, 11, 1295b; LAURENTI. Introduzione alla Politica di Aristotele, op. cit., p. 79; MAGALHÃES GOMES. O homem, a cidade e a lei, op. cit., p. 431-432.185 ARISTÓTELES. Política IV, 8, 1293b.186 Trata-se de distinção referente mais ao caráter moral do que social. Nesse sentido, ROMILLY, Jacqueline de. La notion de “classes moyennes” dans l’Athènes du Ve s. av. J. C. Revue des Études Grecques, v. 100, n. 475-476, p. 1-17, jan./jun. 1987.187 ARISTÓTELES. Política III, 9, 1280a; ARAÚJO, Cícero Romão Resende de. A forma da República: da constituição mista ao Estado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 9; BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 60-61. Ver ainda Política IV, 4, 1290b.188 BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 60.189 ARISTÓTELES. Política IV, 1293b-1294b; LAURENTI. Introduzione alla Politica di Aristotele, p. 78; 95-96; MAGALHÃES GOMES. O homem, a cidade e a lei, op. cit., p. 4354436; BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 61.190 REALE. Introduzione a Aristotele, op. cit., p. 124-125.191 ARISTÓTELES. Política IV, 10, 1295a-1295b.192 BODÉÜS, Richard. Law and Regime in Aristotle. In: LORD; O’CONNOR (eds.). | 53 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSa eudaimonia, pôr-se em ato, principalmente, cultivar a razão193. Para a vida boa, há uma organização político-social correspondente194. É o que buscam todas as poleis concretas, cada uma a seu modo, motivo pelo qual, além da classificação entre formas retas e desviadas, está subjacente uma divisão entre formas puras e impuras, isto é, mistas. Na prática, são a maioria – ou mesmo todas – das constituições no mundo grego: regidas por um princípio central, chamam outros princípios matizadores para satisfazer às especificidades de cada povo. Atentemo-nos para essa questão, pois logo a reveremos em Cícero.Ainda assim, Aristóteles não descarta cogitar uma forma de governo que atenda às condições indispensáveis para que um homem seja virtuoso, conforme critérios de população, território, cidadãos, funções e educação195 longe dos extremos. Para ele, é possível valer-se da razão para conceber a melhor constituição em todos os tempos e lugares, de acordo com a natureza, capaz de melhor realizar o telos de todas as poleis, tendo em mira a eudaimonia. Entretanto, não se trata de uma formulação ideal ao modo platônico, mas um marco de perfeição a incitar os povos concretos a buscarem aprimorar-se diante dos meios que lhe são disponíveis. Essa politeia sinaliza, portanto, que o melhor se dá “nos limites do humano”196. Por isso, equivoca-se Jaeger ao afirmar que Aristóteles “assume a noção de Platão de um estado ideal e a apoia com ampla fundamentação empírica resultando numa ciência descritiva das constituições”197. A rejeição da república platônica no Livro II198 decorre, precisamente, da recusa em crer na concretização do melhor apartado das peculiaridades impostas pela realidade. A melhor politeia é uma constituição pensada consoante aquilo que é necessário a um homem virtuoso, enquanto a perfeição concebível. Tal como as formas puras, serve Essays on the Foundations of Aristotelian Political Science, op. cit., p. 237.193 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco X 1177a-1177b; SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: seu fundamento na igualdade e na liberdade. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995, p. 29-30.194 Vale notar que as tipologias apresentadas em outras obras diferenciam-se parcialmente do quadro da Política. Cf. Retórica I, 8, 1365b, 31 et seq; Ética a Eudemo VII, 9, 1241b, 27 et seq; Ética a Nicômaco VIII, 10, 1160a-b.195 ARISTÓTELES. Política VII, 2-7, 1324a-1328a et seq; 1333a 26 et seq.196 BODÉÜS, Richard. Aristóteles. A justiça e a cidade. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2007, p. 32.197 JAEGER, Werner. Aristotle: fundamentals of the history of his development. Trad. Richard Robinson. 2. ed. Oxford: Clarendon Press, 1948, p. 264 (tradução nossa).198 REALE. Introduzione a Aristotele, op. cit., p. 131.54 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOScomo orientação teórica para os legisladores concretos atuarem em relação às constituições impuras que têm diante de si, objetivando a excelência dos cidadãos199. É a paideia pela lei, que educa, incute virtudes200, o que exige refletir sobre a política, pois o melhor, conquanto possível, não é obra do acaso, advém do conhecimento e da escolha intencional201. Isso é um desafio, uma vez que a realidade é complexa e a mistura fática das formas de governo retrata nuances assumidas pela vida humana202, quer dizer, as constituições são dinâmicas e podem adotar numerosas configurações203. O caráter fundamental de uma politeia é dinâmico, é um fim a atingir (entelekheia)204, qual seja, a excelência. Para alcançar essa conformidade com o fim natural do ser humano, diferentes povos tomaram caminhos variados, segundo as suas idiossincrasias históricas, de modo a comporem sempre constituições mistas. Portanto, o concretizável e o possível ao homem é a combinação de princípios políticos. Entre os tipos basilares elencados por Aristóteles, a monarquia, embora boa, não é própria a uma sociedade livre e igual como as dos gregos de seu tempo205, enquanto a aristocracia promove a união da riqueza, da liberdade e da virtude, de modo a ser desejável206. Logo, é a politia que resta como a espécie mais avançada, a melhor para a maioria das poleis porque possível207. Aristóteles abre uma nova perspectiva para a constituição mista e a melhor forma de governo: o olhar irrevogável ao mundo humano.199 BODÉÜS. Law and Regime in Aristotle, op. cit., p. 247-248.200 SANTOS. O homem e a cidade na Grécia Antiga, op. cit., p. 57-58. Ver também ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco V, 1129b-1130a.201 ARISTÓTELES. Política VII, 13, 1332a, 31. O que não afasta a ocorrência de leis contradizendo os princípios constitucionais originais, consideradas então “erro do legislador”, pelo que o filósofo tem a missão de assegurar a coerência da politeia. Cf. Política II, 11, 1273a; BODÉÜS. Law and Regime in Aristotle, op. cit., p. 240-243.202 ROMILLY, Jacqueline de. Le classem*nt des constitutions d’Hérodote à Aristote. Revue des Études Grecques, v. 72, n. 339-343, p. 81-99, jan./dez. 1959, p. 97; ARISTÓTELES. Política II, 6, 1265b; V, 7, 1306b; V, 11, 1313a.203 ARISTÓTELES. Política IV, 1, 1289a. Cf. Política. Trad. António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes. Lisboa: Vega, 1998, p. 272-273: “Com efeito, há quem pense que existe uma forma de democracia e uma forma de oligarquia, o que não corresponde de modo algum à verdade. Nesse sentido, então, não devemos ignorar quantas são as diferentes formas de regime e de quantas maneiras de compõem.”204 VILATTE, Espace et temps: La cité aristotélicienne de la Politique, op. cit., p. 280.205 BERTI, Enrico. Profilo di Aristotele. Roma: Edizioni Studium, 1979, p. 309.206 ARAÚJO. A forma da República: da constituição mista ao Estado, op. cit., p. 11.207 ROSS, David. Aristotle. 6. ed. London; New York: Routledge, 1995, p. 270; BERTI. Profilo di Aristotele, op. cit., p. 310. | 55 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSPartindo da tradição então vigente, os filósofos gregos elevaram o problema dos tipos políticos ao nível teórico e intuíram a tensão entre a reflexão especulativa e a história. O quadro de crise democrática, inobstante apaixonadas defesas, somado à insatisfação quanto às oligarquias e às tiranias, provava a incapacidade das formas tradicionais de governo de proporcionarem estabilidade. Como percebera Tucídides e desenvolveram Platão e Aristóteles, a combinação de elementos originários das formas de governo reputadas boas, embora individualmente inaptas, poderia ser uma solução. Essa interpretação propagou-se dali em diante208. De fato, a teoria da constituição mista alcança,um grau de sofisticação ao tempo do declínio do requinte político das cidades gregas, não apenas porque tentavam reverter esse cenário, mas também porque urgia a compreensão dos esquemas constitucionais originais dos novo império em ascensão, muito diverso das monarquias tradicionais. Por exemplo, Catão, o Velho, enxergava na constituição de Cartago três partes, similar a Roma209. É ao exame desta última que se dedicará o grego Políbio210, reorientando as reflexões para o novo polo político e intelectual do Mediterrâneo211. Em sua História, pretendia 208 Platão e Aristóteles fundaram escolas e deixaram seguidores, alguns dos quais também se dedicaram à filosofia política. É o caso de Dicearco de Messina, peripatético que, na virada do século IV para o III a.C., teria esboçado uma constituição mista. Cf. HAHM. The mixed constitution in Greek thought, op. cit., p. 191; LINTOTT, Andrew. The theory of mixed constitution at Rome. In: BARNES, Jonathan; GRIFFIN, Miriam (eds.). Philosophia Togata II: Plato and Aristotle at Rome. Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 72-73. Cícero conhecia a obra, que pode ter repercutido em seus trabalhos. Em Att. XIII, 32, 2, registra a busca pelo Tripolitikos de Dicearco e, em XIII, 33, 2, afirma ter recebido os livros do autor solicitados a Ático. Sobre Dicearco em Cícero, ver McCONNELL, Sean. Cicero and Dicaearchus. In: INWOOD, Brad (Ed.). Oxford Studies in Ancient Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2012, v. XLII. Pode ter sido fonte de Políbio. Cf. WALBANK, Frank. W. A historical commentary on Polybius. Oxford: Clarendon Press, 1957, v. I, p. 640-641. Dentre expoentes da constituição mista lembrados pela tradição, estão Hipódamo de Mileto, Arquitas de Tarento e estoicos como Crisipo e Panécio, este último que, em Roma, integrou o círculo de Cipião e influenciou Cícero. Cf. ARISTÓTELES. Política II, 8, 1267b, 22 et seq; 12, 1273b, 35 et seq; DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres VII, 131.209 MAURO SÉRVIO HONORATO. Vergilii carmina comentarii 682.210 Proveniente de Megalópolis, na Arcádia, Políbio foi feito prisioneiro entre os mil jovens levados como punição à Liga Aqueia pelo pouco apoio provido durante a campanha de conquista da Macedônia. Inserido no meio militar, político e intelectual de Roma, empreende leitura da constituição dos romanos segundo categorias gregas, mas com perspectiva significativamente original. Sobre esses aspectos da vida de Políbio, ver MOMIGLIANO, Arnaldo. Ensayos de historiografía antigua y moderna. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 63.211 Os modelos teóricos desenvolvidos na Grécia encontram espaço em Roma no período de intensa helenização que ocorre com a impetuosa expansão militar romana 56 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOScompreender e relatar, aos seus compatriotas e aos jovens conquistadores, as causas da rápida e admirável ascensão romana212. Para Políbio, a causa predominante do sucesso ou não de um governo é “forma de sua constituição, pois dela, como de uma fonte, nascem não somente todos os desígnios e planos, mas a sua própria realização”213. O melhor tipo, então, é uma combinação entre monarquia, aristocracia e democracia214, como “tivemos prova disso não somente em teoria mas também nos fatos”, com a constituição de Esparta, elaborada “seguindo esse princípio”215. Como historiador, Políbio recusa constituições ideais como a de Platão, preferindo buscar no manancial histórico-empírico o material de estudo. É por ele que verifica a existência de cidades que se distanciam da forma primária e agregam características degeneradoras216, originando três tipos afins, a realeza (basileia), a oligarquia e a oclocracia217.As espécies de constituição se sucedem no tempo e repetem-se, constituindo um ciclo, segundo o qual uma forma boa é seguida por sua versão degenerada, que então cede lugar a outra boa. Há uma ordem de crescente declínio (monarquia – realeza – tirania – aristocracia – oligarquia – a partir do século III a.C. É nesse momento que Roma torna-se “senhora do mundo”, inexistindo outra organização ou povo então capaz de contestar o seu poderio. Em termos sintéticos, o domínio estendeu-se para o centro e o sul da Itália e, ao dirigir-se ao norte, entrou em conflito recorrente com a população celta habitante do vale do rio Pó. As províncias da Sicília e da Sardenha foram as primeiras além-mar, produtos da Primeira Guerra Púnica (264-261 a.C.). Províncias no sul da Espanha decorreram da Segunda Guerra Púnica (218-202 a.C.). Dos conflitos contra Cartago, Roma voltou-se para o Oriente, derrotando os reis Filipe V da Macedônia (197 a.C.), Antíoco III da Síria (190 a.C.) e Perseu da Macedônia (168 a.C.). Cf. MILLAR, Fergus. The Roman Republic in political thought. Hanover; London: University Press of New England, 2002, p. 23-24.212 POLÍBIO. História I, 1. Notemos, no final da passagem, a proximidade com Tucídides, cuja História da Guerra do Peloponeso conhecia, ao afirmar que seu trabalho é a “aquisição” de um certo conhecimento.213 POLÍBIO. História VI, 2. Cf. História. Trad. Mário da Gama Kury. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996, p. 325-326.214 POLÍBIO. História VI, 7-9; WALBANK, Frank W. Polybius, Rome and the Hellenistic World: essays and reflections. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 201. Observemos o termo democracia designando uma forma boa, ao contrário de Platão e Aristóteles. Cf. BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit. p. 66.215 POLÍBIO. História VI, 47. Cf. História, op. cit., p. 341.216 POLÍBIO. História VI, 3.217 POLÍBIO. História VI, 4. Notemos como o critério de distinção polibiano aproxima-se do critério platônico, notadamente em O político, e não do aristotélico. Cf. BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 66-67. | 57 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdemocracia – oclocracia)218. Do caos final da oclocracia219 à condução racional da realeza, primeira forma boa, os homens regridem à “animalidade total” até acharem “novamente um senhor e autocrata [monarca]”, introduzindo uma sétima forma de governo, a “monarquia” (monarkhia)220. Esse curso natural de transformações221 é análogo ao processo biológico dos seres vivos222: as constituições surgem, crescem, atingem a plenitude e declinam, naturalmente (kata physin), o que qualifica a teoria polibiana como uma “antropologia política”223, pois, além da natureza, também as instituições humanas se conformam a uma trajetória cíclica224, por um movimento que, oscilando entre tipos, afirma a recorrência histórica225.Como preleciona Bobbio226, todas as formas de governo simples, boas e más, têm duração breve, porque sofrem de um grave vício comum, a falta de estabilidade, elemento indispensável para a prosperidade contínua e harmoniosa da vida em comunidade. Assim, porque instáveis, as formas boas são igualmente más, desaparecendo a distinção entre constituições retas e degeneradas. A saída, para Políbio, é combinar as três formas boas em uma única constituição. Licurgo, mítico legislador espartano227, teria percebido a 218 BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., op. cit., p. 67-68.219 Sobre a oclocracia, ver as observações de CHAMPION, Craige B. Cultural politics in Polybius’s Histories. Berkeley: University of California Press, 2004, p. 89.220 POLÍBIO. História VI, 4-5; 9. Cf. História, op. cit., p. 328-328; 331; ARAÚJO. A forma da República, op. cit., p. 6; WALBANK, Frank W. Polybius on the Roman Constitution. The Classical Quarterly, v. 37, n. 3-4, p. 73-89, jul./out., 1943, p. 78; THORNTON, John. La costituzione mista in Polibio. In: DOMENICO, Felice (ed.). Governo misto: ricostruzione di un’idea. Napoli: Liguori, 2011, p. 67-118.221 POLÍBIO. História VI, 7-9. Cf. História, op. cit., p. 331.222 POLÍBIO. História VI, 4. A ideia de que todas as coisas nascem, crescem e declinam remonta a Anaximandro,,por exemplo, no fragmento A14. No tempo de Tucídides era lugar-comum e, no período helenístico, foi utilizada pelos estoicos. Cf. WALBANK. A historical commentary on Polybius, v. I, op. cit., p. 645-646.223 NICOLET, Claude. Polybe et la “Constitution” de Rome: Aristocratie et Démocratie. In: NICOLET, Claude (dir.). Demokratia et Aristokratia. A propos de Caius Gracchus: mots grecs et réalités romaines. Paris: Publications de La Sorbonne, 1983, p. 16.224 TROMPF, G. W. The idea of historical recurrence in Western thought: from Antiquity to the Reformation. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1979, p. 12-15. Sobre as possíveis origens do ciclo em Políbio, ver WALBANK. A historical commentary on Polybius, v. I, op. cit., p. 643-644.225 TROMPF. The idea of historical recurrence in Western thought, op. cit., p. 32-33.226 BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 69.227 Ver PLUTARCO. Licurgo. Essa não deixa de ser uma Esparta quimérica, como também viram Platão e Aristóteles. Cf. OLLIER, François. Le mirage spartiale: Étude sur l’idéalisation de Sparte dans l’antiquité grecque du debut de l’école cynique jusqu’à 58 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSocorrência necessária e natural das transformações mencionadas, pelo que buscou unir as características boas dos tipos simples, para a força de cada tipo fosse contrabalançada pela dos demais, conservando um estado de equilíbrio. Contudo, Esparta alcançou a grandeza de sua constituição mista por meio dos esforços de um legislador, que a estruturou racionalmente, após compreender o movimento da natureza. Roma, em contrapartida, germinou não por raciocínio prévio, mas em meio às adversidades, no enfrentamento das dificuldades e resolução dos problemas concretos228. Similarmente àquela, também gozava de três fontes de autoridade política ao tempo da Segunda Guerra Púnica, perfeitamente balanceadas:O espírito de equidade e a noção de conveniência sob todos os aspectos demonstrados em todas as es-feras governamentais no uso desses três elementos para estruturar a constituição e para a sua aplicação subsequente eram tão grandes que, mesmo para um cidadão romano, seria impossível dizer com certeza se o sistema em seu conjunto era aristocrá-tico, democrático ou monárquico. E tal sentimento era natural. Com efeito, a quem fixar a atenção no poder dos cônsules a constituição romana parecerá aristocraticamente monárquica; a quem fixá-la no Senado ela mais parecerá aristocrática, e a quem a fixar no poder do povo ela parecerá claramente democrática.229A natureza mista da constituição romana consiste em mecanismo de criação de obstáculos ou de cooperação entre os diferentes poderes. Em períodos de ameaça externa, os romanos são compelidos à ação consensual, as instituições buscam satisfazer às necessidades urgentes, executar prontamente as decisões. Em momentos de tranquilidade e prosperidade, quando frequentes as insolências e o autoritarismo, um poder cresce em la fin de la cité. Paris: Les Belles Lettres, 1943, v. II, p. 137 et seq.228 POLÍBIO. História VI, 10.229 POLÍBIO. História VI, 11. Cf. História, op. cit., p. 333. | 59 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdetrimento dos outros, que podem agir para contê-lo, a fim de assegurar o respeito às suas atribuições230. Políbio entreviu no passado de Roma a transformação de sua constituição até a forma mista segundo passagens que não eliminaram a configuração anterior, gerando um novo organismo mais complexo231. Ademais, nutriu a expectativa de decadência, já perceptível em alguns sinais232. Com efeito, para ele, nem mesmo a constituição mista mais primorosa está resguardada do desmoronamento, pois todas devem “sofrer o declínio imposto pela divindade, à semelhança das criaturas humanas”233. Ao contemplar um eventual colapso, quando a maioria proclamava a dominação eterna234, Políbio também afirma um papel para a Fortuna (tyche) nas ascensões e derrocadas235. O mundo conhecido ter sido unificado sob Roma por empresa da Fortuna não implica negar o peso da ação humana, mas defender uma complementariedade236 entre os caminhos naturais e o construir humano da história. A rigidez da anakyklosis não é fixidez. Roma é um exemplo de interrupção ou quebra do circuito ao desacelerar a sucessão das formas de governo e as mudanças sociais por meio de uma constituição mista, sendo este o seu grande mérito237. Mas isso não a exclui do percurso natural. Assim, inexiste contradição entre as teorias da anakyklosis e da constituição mista238, cuja compatibilização para explicar o sucesso da Roma imperial é a grande 230 POLÍBIO. História VI, 18; FRITZ, Kurt von. The theory of mixed constitution in Antiquity: a critical analysis of Polybius’ political ideas. New York: Columbia University Press, 1954, cap. VIII.231 THORNTON. La costituzione mista in Polibio, op. cit., p. 30-31.232 Cf. PELLING, Christopher. The Greek historians of Rome. In: MARINCOLA, John (Ed.). A companion to Greek and Roman historiography. Malden: Blackwell, 2007, v. 1, p. 247; BARONOWSKI, Donald Walter. Polybius and Roman Imperialism. London; New York: Bloomsbury, 2011, p. 156-159; POLÍBIO. História, I, 13; XVIII, 35; XXXI, 25; XXXVIII, 21.233 POLÍBIO. História XXXVIII, 22. Cf. História, op. cit., p. 554.234 BARONOWSKI. Polybius and Roman Imperialism, op. cit., p. 62.235 POLÍBIO. História I, 4; WALBANK. Polybius, Rome and the Hellenistic World, op. cit., p. 194; Id. Fortune (tyche) in Polybius. In: MARINCOLA, John (Ed.). A companion to Greek and Roman historiography. Malden: Blackwell, 2007, v. 1, p. 353-354.236 SANT’ANNA, Henrique Modanez de. Políbio e os princípios de sua investigação histórica: algumas considerações. Revista Mundo Antigo, v. 1, n. 2, p. 141-153, dez. 2012, p. 146.237 WALBANK. Polybius, Rome and the Hellenistic World, op. cit., p. 185-186; 205.238 Id. A historical commentary on Polybius, v. I, op. cit., p. 647; BOBBIO. A teoria das formas de governo, op. cit., p. 72.60 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOScontribuição de Políbio239, ainda mais por fazê-lo nos termos de uma história pragmática, isto é, escrita com o propósito de fornecer lições políticas e militares240, produzida para o grupo de Cipião241. A via escolhida foi aplicar categorias teóricas gregas na leitura da história, da política e da sociedade romanas, mas aportando contornos originais242. De fato, a politeia romana é posicionada ao lado das poleis gregas melhor organizadas racionalmente e, ao final, sobressai como estrutura política e militar de espantosa precisão e eficiência, sem precedentes em grau de regularidade e perfeição na história helênica. Isso deve ter soado estranho ao público grego243, se não mesmo incômodo, por concluir pela inferioridade política ática244. No entanto, o historiador “incorpora Roma no discurso político grego e, assim, encoraja os seus leitores a olhar Roma nos termos das poletai gregas”, pressupondo plateias gregas e romanas compartilhando o mesmo arcabouço intelectual245. Cícero parte dessa mesma percepção, com a diferença de inserir com clareza o material histórico-axiológico romano que seu antecessor não assumira. Constatemos como Políbio inaugura um efetivo delineamento conceitual integrado com a história. As nossas remissões às formas de governo na poesia, nas tragédias e na historiografia revelaram-se alusões, em sua maioria, superficiais, atreladas aos debates de defesa ou crítica de certas posições políticas, sem estabelecer princípios gerais de cada uma. A maior exceção foi Heródoto, mas ainda assim sem pleitear a construção de uma teoria abrangente das formas de governo, o que ocorrerá com os filósofos. Na República, Platão apresenta uma constituição cuja perfeição decorre da articulação de diferentes elementos sociais, econômicos e governamentais, alinhados com a natureza de cada homem, portanto,,uma constituição mista 239 WALBANK. Polybius, Rome and the Hellenistic World, op. cit., p. 203.240 POLÍBIO. História IX, 1-2; SANT’ANNA. Políbio e os princípios de sua investigação histórica, op. cit., p. 145; GUELFUCCI, Marie-Rose. Polybe, le regard politique, la structure des Histoires et la construction du sens. Cahiers des études anciennes, n. XLVII, p. 329-357, 2010.241 MOMIGLIANO, Arnaldo. Alien wisdom: the limits of hellenization. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 24.242 PELLING. The Greek historians of Rome, op. cit., p. 247.243 CHAMPION. Cultural politics in Polybius’s Histories, op. cit., p. 67-68.244 ERSKINE, Andrew. Making Sense of the Romans: Polybius and the Greek Perspective. Dialogues d’histoire ancienne, Supplément n. 9, p. 115-129, 2013, p. 119.245 CHAMPION. Cultural politics in Polybius’s Histories, op. cit., p. 90 (tradução nossa). | 61 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSde pleno direito. No entanto, já entre os antigos, Platão foi acusado de ter se esquivado propositalmente de incorporar aos fundamentos de sua politeia elementos substanciais da experiência política passada e presente. Com Aristóteles ocorre um deslocamento notável. Contrapondo-se ao mestre, ele rejeita a proposição de uma constituição ideal e entende que a melhor forma de governo depende dos diferentes povos, segundo as características de cada homem. Ao examinar as variadas manifestações políticas da Grécia desde as suas origens, aproxima-se da realidade empírica. Se a história não é plenamente assumida como elemento determinante, Aristóteles reconhece a constituição mista como a regra. É com Políbio, historiador, que a forma mista ganha primazia, acompanhada explicitamente pelo fator histórico. Ele perpassa a ascensão de Roma e nela identifica uma composição sofisticada que interliga diferentes elementos em um funcionamento concertado. A teoria grega é chamada a explicar um tipo de governo que, a priori, não tem exemplo no mundo em que nasceu, pois se trata de outro povo, com costumes e leis diversos. Porém, cresce a admissão da viabilidade de empregá-la para abarcar essa realidade. O que Políbio não podia esperar é que, a partir de sua obra e dos contributos subsequentes de Cícero, aquela formulação grega fosse acabar confundindo-se com Roma. E como a cultura romana era profundamente arraigada a seu passado, às suas tradições, tomará a sua própria história para fundamentar e comprovar a teoria das formas de governo e a constituição mista como a melhor entre todas as existentes no presente e no passado. Outrossim, atentemo-nos que o tipo misto é mais do que a mera compatibilização de elementos provenientes de formas de governo boas a fim de alcançar a estabilidade político-social, pois as primeiras teorias políticas já pressupunham a obtenção da estabilidade por meio de uma rede relações travadas entre as diferentes instituições políticas, por sua vez expressando determinados grupos sociais. A constituição mista surge como a única forma capacitada a articular harmonicamente as diversas forças sociais ao conferir a cada uma delas uma parte no poder. Não se trata de repartição de competências aos moldes modernos, mas uma divisão de tarefas, com o cruzamento de funções. Assim, essas forças, por meio de suas atribuições, controlam os poderes umas das outras, pois, nenhuma 62 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSde suas responsabilidades é completa em si mesma, não podendo agir de maneira totalmente independente. A operação plena do sistema ocorre apenas com a atuação concertada de todos, por cooperação e contraposição, engendrando um “equilíbrio de forças, acionadas por diferentes agências políticas que crescem dentro de um mesmo arranjo global”, mesclando as formas constitucionais simples tradicionais, a saber, monarquia, aristocracia e democracia246. Nessa linha, Fritz define a constituição mista como “um sistema em que o poder supremo é compartilhado e mais ou menos distribuído igualmente entre esses três elementos”, originando-se do equilíbrio entre os diferentes grupos constituintes daquela sociedade247. Araújo defende que, em vez de grupo social ou classe, o melhor termo é ordem. Segundo Weber, a “ordem social” é a forma pela qual as honras sociais são distribuídas em uma comunidade. Está relacionada às ordens econômica e jurídica, mas é diversa248. Adotando as categorias weberianas, Finley define “ordem” (do latim ordo) ou “estamento” como “um grupo juridicamente definido”, que possui “possui privilégios e incapacidades formalizadas [...] e situa-se em relação a outras ordens numa relação hierárquica”249. O reconhecimento social, oficial e político era importante para a identidade das ordens a ponto de se cristalizarem em agências governamentais, isto é, “as diferentes instituições, que exerciam certas responsabilidades políticas e não outras, tendiam a ser também órgãos de manutenção da identidade das diferentes ordens”250. Por isso a tradição antiga considerava as formas simples como expressão do governo de uma ordem específica dentro da comunidade. Ela até podia ser boa, mas tendia irremediavelmente à degeneração porque em desequilíbrio com as demais ordens. De todo modo, reconhecer a politeia mista como solução não reduz a dificuldade, pois, como vimos em Aristóteles, ainda caberia “escolher a melhor entre as muitas possíveis constituições mistas, isto é, a 246 ARAÚJO. A forma da República, op. cit., p. 17; 19-21.247 FRITZ. The theory of mixed constitution in Antiquity, op. cit., p. 184 (trad. ARAÚJO. A forma da República, op. cit., p. 27); 217.248 WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Trad. Waltensir Dutra. 5. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1982, p. 212.249 FINLEY, M. I. A economia antiga. Trad. Luísa Feijó. Porto: Edições Afrontamento, 1980, p. 56-57.250 ARAÚJO. A forma da República, op. cit., p. 36. | 63 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmelhor dosagem e mistura dos diferentes elementos de sua composição”251, conforme necessário para um compromisso entre os agentes envolvidos252.Em vista disso, o ponto de partida é o conflito constitucional, desenrolado em dois planos: a disputa pelo poder e as incessantes mudanças estruturais que isso ocasionava253. Os compromissos firmados entre as ordens são temporários, atendem a interesses conjunturais e, logo, estão sujeitos a frequentes modificações, posto que as disputas não cessam. Em virtude disso, mesmo a constituição mista sofre transformações e pode fenecer. Quando atritos dessa natureza se tornaram mais acentuados na Grécia, a partir do século V a.C., agitaram também os pensadores, que finalmente se atentaram para a insubsistência dos tipos simples e, por consequência, para as qualidades da constituição mista, ampliando, assim, os modelos teóricos e os exemplos históricos inspiradores de críticas ou elogios254. As várias teorias das formas de governo na Antiguidade são, em suma, simplificações em agrupamentos que permitem traduzir conflitos em curso no seio da sociedade sob a forma de oposições entre configurações distintas. Com o tempo, esses esquemas conceituais tornaram-se mais complexos, de modo a aumentar as classificações: de três formas primárias, passam-se a cinco e, finalmente, seis, progressão que nos permite ver as grandes etapas do pensamento político helênico255. A ânsia de classificação da realidade é traço característico do labor racional que alvoreceria junto com a filosofia. No entanto, toda redução do real é imperfeita, defectível. Na classificação das formas políticas, o primeiro sinal dessa falibilidade é, como lembra Saldanha, o problema da categorização de formas intermediárias em relação aos tipos básicos, situáveis como novas formas, subformas ou regimes, ou seja, se são inscritas em um plano categorial único ou alocadas secundariamente, se são classificadas sintética ou analiticamente256.Há um grave erro, recorrente,em muitos pensadores, que é classificar por tipos abstratos, construídos “sem ter em conta o ‘more historico’, os casos 251 Ibid., p. 38.252 HAHM. The mixed constitution in Greek thought, op. cit., p. 197.253 FINLEY. Politics in the Ancient World, op. cit., p. 101-102.254 HAHM. The mixed constitution in Greek thought, op. cit., p. 196.255 ROMILLY. Le classem*nt des constitutions d’Hérodote à Aristote, op. cit., p. 83-84256 SALDANHA. As formas de governo e o ponto de vista histórico, op. cit., p. 49-50.64 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdados e pretendendo valer para todos os casos possíveis”, pois geralmente são inaptos à aplicação aos fatos, distanciam-se irrecorrivelmente da realidade histórica257. Para Romilly, as teorias que procuram se aproximar mais e mais da realidade, produzem o efeito contrário, pois gestam tipos puramente teóricos258. Não concordamos inteiramente com essa conclusão. Os empreendimentos especulativos que conscientemente aceitam e buscam integrar as manifestações políticas apresentadas pela história, conciliam ideia e história, ainda que incipientemente, no sentido de reconhecerem como fator central de compreensão do real o coeficiente histórico259.É esta a chave de leitura que precisaremos levar a Marco Túlio Cícero e à sua constituição mista, a derradeira grande formulação da melhor forma de governo na Antiguidade, segundo um debate já totalmente emergido no mundo romano.1.2. Prolegômenos à história ciceroniana de Romadecet patriam nobis cariorem esse quam nosmet ipsos260Cícero designa a constituição, no sentido de politeia, como status civitatis, em especial, quando discute sobre a melhor constituição (optimus status civitatis261 ou optimus status civitatis rei publicae)262. Res publica, por sua vez, é utilizada para se referir às formas políticas em geral263. Inexiste um equivalente em grego para transmitir tal noção. Polis não é adequado, pois res publica, segundo Schofield, é uma propriedade da polis. Mais do que uma forma contraposta ao governo tirânico, a res publica pode ter por sinônimo civitas264.257 Ibid., p. 51.258 ROMILLY. Le classem*nt des constitutions d’Hérodote à Aristote, op. cit., p. 99.259 SALDANHA. As formas de governo e o ponto de vista histórico, op. cit., p. 52-53.260 CÍCERO. Fin. III, 64. Cf. Textos filosóficos. Trad. J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 404: “nos deve ser mais cara a pátria do que nós mesmos” (adaptado).261 CÍCERO. Rep. I, 33.262 CÍCERO. Leg. I, 15.263 D’ORS, Álvaro. Introducción. In: CICERO. Sobre la República. Trad. Álvaro D’Ors. Madrid: Gredos, 1984, p. 19.264 SCHOFIELD, Malcolm. Cicero’s definition of res publica. In: POWELL, J. G. F. (ed.). | 65 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSPela boca de Cipião Africano, Cícero define res publica como res populi, coisa do povo, sendo povo não “todo conjunto de homens reunido de qualquer maneira, mas o conjunto de uma multidão associada por consenso de direito e por utilidade comum” (populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et utilitatis communione sociatus)265. Mas essa definição é um conceito complexo, que somente poderá ser compreendido após percorrermos as obras de Cícero e delas extrairmos como o cônsul concebia as formas de governo e os elementos componentes da melhor entre todas.Para nosso autor, em posição diversa do “contratualismo” epicurista266 e próximo à sociabilidade aristotélica, os homens unem-se em virtude de certa tendência associativa natural267. É deveras inverossímil que tenham decidido viver em comunidade apenas devido à incapacidade de sustentar-se sem os demais268. Embora essa carência não seja questionada, Cícero considera como princípio natural o vínculo “constituído pela razão e pela linguagem que, ensinando, aprendendo, comunicando, discutindo e raciocinando, associam os homens uns com os outros, reunindo-os numa espécie de sociedade natural”. É decorrente da razão e da linguagem (rationis et orationis) que, diferentemente dos animais, podemos falar de justiça, equidade e bondade em relação aos homens269. Enlaçam-se, ademais, por meio das coisas “que foram criadas pela natureza para usufruto comum dos homens” e “pertença de toda a comunidade”, como a água, o fogo, o aconselhamento, a boa-fé, de Cicero the Philosopher: Twelve Papers. Oxford: Oxford University Press, 1995, p. 68; FIORAVANTI, Maurizio. Constitución. De la Antigüedad a nuestros días. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 2001, p. 28-29. Sobre a visão política dos gregos acerca de Roma e a transformação da concepção helênica de polis em face da conquista romana, ver ANDO, Clifford. Was Rome a polis? Classical Antiquity, v. 18, n. 1, p. 5-34, abr. 1999.265 CÍCERO. Rep. I, 39.266 LUCRÉCIO. De rerum natura V, 1020-1027. Cf. Da natureza. Trad. Agostinho da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 117: “Foi também por essa altura que a amizade começou a juntar os vizinhos entre si, pelo desejo que tinham de não se prejudicar nem de usar de violência uns contra os outros [...]. Não é que a concórdia pudesse nascer em todos os casos, mas uma boa e grande parte conservava fielmente os seus tratados; caso contrário, já todo o gênero humano teria desaparecido, nem poderia a descendência ter-se propagado até hoje.”267 CÍCERO. Rep. I, 39.268 CÍCERO. Off. I, 158.269 CÍCERO. Off. I, 50.66 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmodo que tudo o que é regulado pelas leis e pelo direito civil (quae discripta sunt legibus et iure civili) deve estar em conformidade com aquilo que é estabelecido por essas mesmas leis270. Além desse nível, há outro gênero de sociedade humana,partilhado por todos aqueles que formam o mesmo povo, pertencem à mesma nação, falam a mesma língua, assim os homens mais se aproximando uns dos outros. O fato de se pertencer à mesma cidade constitui aquele estádio mais íntimo; muitas coisas tornam-se realmente comuns entre os cidadãos: o foro, o pórtico, as ruas, as leis, os tribunais, as vota-ções, além disso os costumes, os laços de parentes-co e os numerosos negócios entre tantos firmados. Uma união ainda mais estreita corresponde àquela comunidade formada por aqueles que nos são mais próximos. A partir dessa tão imensa comunidade humana [inmensa societate humani generis] chega-mos, por fim, a uma comunidade mais íntima e confinada.271São categorias de associação humana a união conjugal (coniugio), ampliada depois aos filhos (liberis), formando-se a casa (domus), onde tudo se partilha em comum. É esta “a origem da cidade e quase o embrião da república” (id autem est principium urbis et quasi seminarium rei publicae). Seguem-se os laços entre irmãos, depois entre sobrinhos e primos, que instalam outras casas ou colônias; os casamentos e os parentescos, “cuja proliferação e descendência constituem a origem das repúblicas”272. O laço intensifica-se quando os homens compartilham os mesmos monumentos ancestrais, cultos e sepulturas. Contudo, “entre todas as sociedades, nenhuma é mais nobre, nenhuma, mais sólida, do que aquela na qual todos os homens de bem [viri boni] partilham os mesmos costumes e se encontram unidos por uma profunda amizade”273. Com efeito,270 CÍCERO. Off. I, 51-52. Cf. Dos deveres. Trad. Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 33-34.271 CÍCERO. Off. I, 53. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 34-35.272 CÍCERO. Off. I, 54. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 35.273 CÍCERO. Off. I, 55. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 35. | 67 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSnão existe elo social mais importante, nenhum mais querido que não seja aquele que nos une, cada um de nós, à república. Por nós queridos são os nossos pais, caros, os filhos, os parentes, os amigos, mas só a pátria pode abarcar de todos a afeição; por ela que,homem de bem poderá hesitar em enfrentar a morte, se tal se revelar para ela vantajoso?274Por outro lado, Cícero está ciente de que, inobstante os impulsos naturais originários, a instituição da cidade e da república teve por razão sobretudo (causam maxime) a “custódia dos seus próprios bens” (custodiae rerum suarum)275. Ainda assim, a nosso ver, o foco da formação das comunidades humanas, em dissonância com a interpretação de alguns autores de origem anglo-americana276, não está tanto na propriedade. É preciso cotejar o De officiis com o De re publica. Nesta última obra, ao reconstituir o começo dos povos, Cícero endossa a visão de que eram simples, desprovidos de capacidades ou instituições políticas. Os grupos estabeleciam-se em determinados lugares para fixar moradia, a partir de seus próprios esforços. O conjunto das habitações foi denominado povoado ou cidade (oppidum vel urbem appellaverunt), reservando-se espaço para templos e áreas de uso comum. A partir de então surge a necessidade de governo:todo pueblo, que es tal conjunción de multitud [coe-tus multitudinis], como he dicho, toda ciudad [civi-tas], que es el establecimiento de un pueblo [consti-tutio populi], toda república [res publica], que, como he dicho, es lo que pertenece al pueblo [populi res est], debe regirse, para poder perdurar [ut diutur-na], por un gobierno [consilio]277.274 CÍCERO. Off. I, 56-57. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 36.275 CÍCERO. Off. II, 73. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 107.276 Vide, entre outros, WOOD, Neil. Cicero’s social and political thought. Berkeley; Los Angeles; Oxford: University of California Press, 1991.277 CÍCERO. Rep. I, 41. Cf. Cf. Sobre la República. Trad. Álvaro D’Ors. Madrid: Gredos, 1984, p. 63.68 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSComo o povo deve sempre servir à cidade, o governo pode ser atribuído a uma só pessoa, um rei, tendo-se, então, como constituição, um reino (regnum eius rei publicae statum); ao arbítrio de alguns poucos escolhidos como os melhores da cidade (civitas optimatium arbitrio) ou à multidão de todos, uma cidade popular (civitas popularis) na qual o povo tudo pode. Essas três formas são aptas a manterem o vínculo originário da sociedade (rei publicae societate), ou seja, garantir estabilidade (statu), desde que os governantes não ajam com injustiça ou cupidez. Portanto, não basta o instinto natural. Razão e vontade são indispensáveis278. As três formas de organização mencionadas, em sua pureza, não são as melhores porque possuem vícios (vitiis) inerentes. Nos reinos, os cidadãos estão apartados de todo direito e governo; na aristocracia, a multidão não participa da liberdade por carecer de poder de governo; na democracia, mesmo quando o povo é justo e moderado, a igualdade é injusta porque não há distinções de dignidade (aequabilitas est iniqua, cum habeat nullos gradus dignitatis), o que faz dela a menos desejável. São provas disso alguns exempla, históricos e contemporâneos, colacionados por Cícero: Ciro, rei da Pérsia, foi famoso por sua justiça e sabedoria, mas a res populi era gerida segundo a medida de um só; os marselheses foram regidos por cidadãos principais e selecionados, mas com o povo submetido à condição de servidão; os atenienses decidiam tudo por votação e decretos do povo, mas não mantinham o decoro, pois indistintas as dignidades279. Vemos, então, como defeito comum a todas as três formas puras, a tendência a se degenerarem em uma forma má próxima (perniciosa alia vicina). Em outras palavras, a instabilidade. Eis as ilustrações da história: o amável rei Ciro foi sucedido pelo crudelíssimo Falaris; o governo de poucos pode se degenerar em união facciosa como os Trinta de Atenas; a potestade absoluta do povo ateniense degenerou-se em “loucura e libertinagem”280.Ao contrário da maior parte das teorias gregas, Cícero entende que as formas políticas não se transformam necessariamente em um outro tipo específico. O governo aristocrático, faccioso, régio, tirânico ou popular pode 278 CÍCERO. Rep. I, 41; D’ORS, Alvaro. Nota 103. In: Sobre la república, op. cit., p. 63-64.279 CÍCERO. Rep. I, 43.280 CÍCERO. Rep. I, 44. | 69 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdar lugar a qualquer forma, ainda que a dinâmica em questão não deixe de assumir uma recorrência circular de sucessivas transformações. O homem sábio, então, é aquele que tem o conhecimento que lhe permite prever as degenerações, “como el timonel que modera el curso de la república y la conserva con su potestad”. E se os três tipos puros são imperfeitos em razão da instabilidade, a melhor forma de governo é uma quarta constituição, fruto da combinação dos caracteres daquelas281. Veremos isso adiante.As repúblicas são reflexo de quem as governa. À luz de Platão, o filósofo romano associa a alma com as formas políticas. Através de Cipião, argumenta que, como as almas dos homens estão submetidas ao mando de um rei, a razão, principal parte da alma, que comanda as demais, o governo deve caber a um só. Se o governo é deixado a várias pessoas, não há poder supremo (imperium) governante, pois não pode haver poder se não é único (quod quidem nisi unum sit, esse nullum potest). Assim como Lélio chefia sua casa, o timoneiro conduz o barco e o médico trata dos doentes. Em momentos de crise, o povo recorre a um único homem, tanto que os antepassados instituíram o dictator como líder a exercer o imperium nas épocas mais graves. Portanto, entre as formas puras, a melhor, embora imperfeita, é a monarquia282.Contudo, é somente na verdadeira república que o povo tem realizada a liberdade, pois nela o populus tem o poder (potestas). É justa a cidade na qual todos são livres, os cidadãos participam nas eleições e na votação das leis283. Enfim, a cidade mais feliz tem os cidadãos como “senhores das leis, dos julgamentos, da guerra, da paz, dos tratados com outros povos, da vida dos cidadãos e do dinheiro”. Somente esta é que pode ser chamada propriamente res publica, coisa do povo, prescindindo o populus de um rei ou de melhores284. As demais não devem sequer serem denominadas como tal: apenas aquela é a verdadeira forma de governo. Em todas elas não há liberdade e há sempre o risco de degeneração.O declínio de uma monarquia em tirania pode ser comprovado pela história de Roma. A Urbs foi fundada por Rômulo, homem sábio, a quem foi atribuída a estirpe divina como filho de Marte, deus da guerra. Destacado por 281 CÍCERO. Rep. I, 45. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 66.282 CÍCERO. Rep. I, 60-63.283 CÍCERO. Rep. I, 47.284 CÍCERO. Rep. I, 48.70 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSsua força corporal e energia de espírito, conquistando respeito e obediência, foi convertido em chefe e promoveu as primeiras vitórias militares285. Rômulo resolveu, então, estabelecer uma urbs e assegurar a res publica. Com diligentissime providendum, como se “tivesse adivinhado que um dia essa cidade seria sede e morada do maior império”286, escolheu um lugar acertado, servido de terra e água287, e acautelou com muralhas e fortalezas288. Para consolidar a cidade que fez chamar com seu nome, Roma, agregou os sabinos, associando o rei Tito Tácio ao seu próprio reinado, ideia digna de “um grande homem e de larga visão”289. Também escolheu um grupo de principais (principes) entre os cidadãos, chamados por deferência patres, para formar um conselho real (regium consilium), e distribuiu o povo em três tribos e em trinta cúrias. Após a morte de Tácio, Rômulo contou ainda mais com a autoridade e o conselho dos pais (Romulus patrum actoritate consilioque regnavit)290. Eis que Cipião evidencia um princípio monárquico moderado: tal como Licurgo em Esparta, Rômulo reconhecera que “as cidades se governam e regem melhor sob o mando de um só e poder real, se se agrega a esse domínio a autoridade dos melhores”. Sustentado e defendido por essa espécie,de Senado (quasi senatu), realizou guerras, enriqueceu os cidadãos, dividiu a plebe em clientelas e instituiu sacerdócios291. Pelo governo de um só homem surgiu um novo povo292.Com a morte do rei, o Senado, integrado pelos melhores (optimates, os patres, e sua descendência, patricios), tentou reger sozinho a res publica, mas o povo não o tolerou (populus id non tulit). Os principais criaram um instituto inédito, o interrex, um governante provisório para o período sem rei. O novo monarca foi estabelecido por escolha (deligendum duxit), segundo virtude e sabedoria reais (virtutem et sapientiam regalem), não por estirpe293. Numa Pompílio era um homem que sobressaía nessas qualidades. Apoiado 285 CÍCERO. Rep. II, 4.286 CÍCERO. Rep. II, 10.287 CÍCERO. Rep. II, 5-9.288 CÍCERO. Rep. II, 11.289 CÍCERO. Rep. II, 12-13.290 CÍCERO. Rep. II, 14.291 CÍCERO. Rep. II, 15-16.292 CÍCERO. Rep. II, 21.293 CÍCERO. Rep. II, 23-24. | 71 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSpelo povo, propôs uma lei curiata sobre seu imperium (suo imperio curiatam legem tulit). A principal característica de seu governo foi tentar afastar um pouco os romanos do modo de vida belicoso que Rômulo estimulara294. Para tanto, buscou tornar as instituições mais humanizadas e amansar os ânimos das gentes (quibus rebus institutis, ad humanitatem atque mansuetudinem revocavit animos hominum). Após reinar com grande paz e concórdia (in pace concordiaque), morrreu “deixando confirmadas duas coisas excelentíssimas para a longevidade da república: a religião e a clemência”295. Na sequência, o povo nomeou rei Túlio Hostílio, marcado como chefe militar e respeitoso com a autorização do povo296. Foi sucedido por Anco Márcio, que derrotou os latinos, agregados à cidadania romana, e expandiu o território da cidade297. Segundo Cícero, o período subsequente era pouco conhecido. Lúcio Tarquínio, homem bem educado, tornou-se amigo do rei, a ponto de participar das decisões políticas. Foi nomeado seu sucessor com seu falecimento, por voto unânime do povo. Expandiu o número de senadores, chamando os antigos, a quem requeria a opinião primeiro, patres maiorum gentium298. Educou, junto a seus filhos, Sérvio Túlio, que, destacado por seu engenho, após a morte do rei, começou a governar sem eleição, com a vontade e o consenso dos cidadãos (voluntate atque concessu civium). Não se colocou à disposição dos senadores, mas realizou, por si mesmo, consulta ao povo, que confirmou seu reino e deu a lei curiata de seu imperium. Sérvio Túlio, “o primeiro a reinar sem a ordem do povo”, dividiu-o em centúrias separando os mais ricos (assiduos) dos pobres (proletarios), pois, diz Cipião, para conservar a república, não deve prevalecer a maioria299.Sérvio Túlio foi assassinado por Tarquínio, o Soberbo, que assumiu seu posto. Suportado pelos romanos durante um tempo, pois a fortuna o acompanhou no domínio do Lácio, provocava medo no povo para aliviar a sua consciência intranquila (integra mente non erat) pela mácula do crime, sendo injusto e cruel. Assim, “não podia reger nem seus costumes, nem os 294 CÍCERO. Rep. II, 25.295 CÍCERO. Rep. II, 26-27.296 CÍCERO. Rep. II, 31.297 CÍCERO. Rep. II, 33.298 CÍCERO. Rep. II, 34-35.299 CÍCERO. Rep. II, 37-40.72 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdesejos dos seus”. Quando seu filho violou Lucrécia, que se matou, Lúcio Bruto, homem engenhoso e valoroso, libertou os seus concidadãos do jugo injusto de dura escravidão (depulit a civibus suis iniustum illud durae servitutis iugum). Mesmo sendo um particular (privatus), encarregou-se de toda a res publica para defender a liberdade. A cidade, movida pela autoridade deste homem principal (quo auctore et principe concitata civitas), expulsou o rei300.Por meio dessa digressão histórica, pela qual acompanhamos o relato ciceroniano na voz de Cipião, podemos observar como uma monarquia degenera-se em despotismo, como uma forma de governo boa converte-se em uma forma má. O referencial interpretativo é um modelo grego, no caso, da tirania:Este é, pois, o tipo de senhor do povo que os gregos chamam tirano; porque querem que seja rei aquele que cuida do povo como um pai e que conserva aquelas dos quais está à frente na melhor condição de vida; um gênero de república que, como disse, é boa, mas todavia inclinado e como que tendente ao estado mais pernicioso. Pois, tão logo esse rei se desviou para um domínio injusto, tornou-se ime-diatamente tirano.301O tirano não quer comunhão jurídica (iuris communionem) nem sociedade humana (humanitatis societatem), seja com seus concidadãos, seja com todo o gênero humano (omni hominum genere). A ascensão dessa jaez com Tarquínio impactou de tal modo que, se “os gregos quiseram que esse fosse o nome do rei injusto, os nossos de fato chamaram reis a todos os que tinham sozinhos o poder perpétuo sobre seus povos”302. Em vez de lamúrio e desejo por um novo monarca, o povo passou a odiar até a palavra rex303. A partir de então, o termo de origem grega tyrannus foi convertido em sinônimo de 300 CÍCERO. Rep. II, 44-46.301 CÍCERO. Rep. II, 47-48.302 CÍCERO. Rep. II, 48-49.303 CÍCERO. Rep. II, 52. Sobre o ódio ao nome rex, também TITO LÍVIO. Ab urbe condita XXVII, 19, 4: “regium nomen, alibi magnum, Romae intolerabile esse”. | 73 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS74 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSrex, dominus e seus correspondentes304. Na tradição helênica, o tyrannos era o governante que obteve o poder por usurpação, mas não era necessariamente opressor, vide Cípselo e Psístrato. Entretanto, a superveniência de numerosos governantes cruéis atrelou ao termo a conotação odiosa de déspota malévolo305. Esse estereótipo foi reforçado nas tragédias, nas quais o tirano era o modelo de vilão306. A elite de Roma encontrou nessa “tiranofobia” reproduzida nas adaptações latinas das tragédias algo útil para o discurso público, ao contribuir para esboçar uma imagem negativa de opositores307. Enquanto a histórica aversão romana por reis tecia-os meramente como opressores, o tirano grego adicionava elementos de caráter, como lista Dunkle308: vis, força empregada para obter e manter o poder309; superbia, soberba, insolência, arrogância, próximo ao conceito grego de hybris310; libido, caprichos e indecências, desejos egoísticos, domínio sexual, luxúria, tudo o que contraria a res publica, oposto de lex e da objetividade e impessoalidade do direito311; crudelitas, violência, arbitrariedade, brutalidade, assassínio político312. 304 Ao acusar Tibério Graco de desejar ser rei (basileu), Públio Cornélio Cipião Násica Serapião chamou-o de tirano (tyrannos). PLUTARCO. Tibério Graco XIV, 3; XIX, 3.305 DUNKLE, J. Roger. The Greek tyrant and Roman political invective of the late republic. Transactions and proceedings of the American Philological Association, v. 98, p. 151-171, 1967, p. 152.306 Ibid., p. 153-155. São ilustrativos Zeus em Prometeu Acorrentado e Egisto em Agamênon, de Ésquilo; Édipo em Édipo Rei e Creonte em Antígona, de Sófocles; Lico em Herácles e Penteu em Bacantes, de Eurípedes.307 DUFF, John Wright. A literary history of Rome: from the origins to the close of the golden age. London; Leipsic: T. Fisher Unwin, 1909, p. 231.308 DUNKLE. The Greek tyrant and Roman political invective of the late republic, op. cit., p. 156-160; 168-170.309 CÍCERO. Off. II, 24.310 CÍCERO. Rep. I, 62; II, 46; Rab. Perd. 13; Phil. III, 9. Cf. Filípicas. Trad. Juan Bautista Calvo. Barcelona: Planeta, 1994, p. 75: “Aquel Tarquinio que nuestros antepasados no pudieron sufrir no era cruel, ni impío, sino soberbio [non crudelis, non impius, sed superbus] que es como se le llama, y este vicio, que muchas veces hemos tolerado a simples ciudadanos, no quisieron nuestros antepasados soportarlo en un rey.”311 CÍCERO. Verr. II, 3, 82. Cf. Discursos II. Trad. José,María Requejo Prieto. Madrid: Gredos, 1990, p. 51: “¿pretendiste que tu libido fuera para ti como una ley?” (adaptado); Verr. II, 3, 82. Cf. Discursos II, op. cit., p. 68: “si resulta que la ley era tu libido” (adaptado); Sen. 42. Cf. Da velhice e Da amizade. Trad. Tassilo Orpheu Spalding. São Paulo: Cultrix, s/d, p. 68: (“Pois a volúpia embaraça o julgamento, é inimiga da razão [...].”)312 CÍCERO. Att. VII, 20, 2. Cf. Cartas I: Cartas a Ático. Trad. Miguel Rodríguez-Pantoja Márquez. Madrid: Gredos, 1996, p. 405-406: Cícero questiona sobre César tender a ser um tirano cruel, que persegue os opositores e restringe a liberdade dos cidadãos, ou um tirano moderado (“no se sabe si imitará a Fálaris o a Pisístrato”). Em carta a Cícero, César rejeita qualquer aspecto de crueldade em seu caráter. Cf. Att. IX, 16, 2. | 75 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSCícero relata ter sido acusado de agir como um tirano durante seu consulado, quando da prisão e execução dos colaboradores da conjuração encabeçada por Catilina sem o julgamento pelo povo. Ele mesmo previra que a reação enérgica necessária para estancar a revolta levá-lo-ia a ser acusado de tirania313. Todavia, na sua opinião, eram os próprios mancomunados com Catilina os verdadeiros libidinosos, à margem da lei e cruéis, não o cônsul, salvador da res publica314. Com efeito, aliados de Cícero fizeram acusações semelhantes aos populares que promoveram seu exílio315. Nesse sentido, é vívida a descrição ciceroniana de Clódio, tribuno da plebe propositor de uma lei que impunha o exílio a quem executasse um cidadão romano sem julgamento, intencionando atingi-lo316. Por esses e outros motivos, acusa-o de tê-lo expulsado “sin haber sido condenado y proponiendo medidas tiránicas” (privilegiis tyrannicis inrogatis)317. Para anular o orador de Arpino, perseguiu até sua esposa Terência e seus filhos, grau de maldade não surpreendente para um homem que almejava apossar-se dos bens do adversário, revelando estar movido por ódio e crueldade (odio et crudelitate)318. Porém, mais grave foram os atentados contra princípios e valores fundamentais da res publica, como a profanação da religião e do pudor (religionem et pudicitiam); a derrubada de instituições dos antepassados; ataques aos valores consulares; a criação de privilégio, em afronta à lei natural e ao direito civil319. Se Clódio tivesse obtido 313 CÍCERO. Cat. I, 30. Cf. As catilinárias. Trad. Maximiano Augusto Gonçalves. 6. ed. Rio de Janeiro: Livraria H. Antunes, s/d, p. 56-57: “[...] se eu me voltasse contra aquele, diriam que isto foi feito cruel e tiranicamente.”314 CÍCERO. Dom. 75. Cf. Discursos IV. Trad. José Miguel Baños Baños. Madrid: Gredos, 1994, p. 153: “¿Me recibió mi patria como debió recibir la luz y la salvación que le habían sido devueltas y restituidas o como a un cruel tirano [crudelem tyrannum], que es lo que solíais decir de mi vosotros, los gregarios de Catilina?”. Ver ainda Dom. 93-94 e Fam. XII, 12, 2. Cf. Cartas IV: Cartas a los familiares II. Trad. Ana-Isabel Magallón García. Madrid: Gredos, 2008, p. 509-510: “si empuñé las armas en contra de los más crueles delincuentes, siguiendo tus peticiones e iniciativa, si no sólo he aparejado ejércitos para defender la República y la libertad, sino que también los he arrebatado a los tiranos más cueles.”315 DUNKLE. The Greek tyrant and Roman political invective of the late republic, op. cit., p. 165.316 PLUTARCO. Cícero 30-33.317 CÍCERO. Dom. 110 et seq. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 175 et seq.318 CÍCERO. Dom. 59; 107; 62.319 CÍCERO. Prov. cons. X, 24; Dom. 104; 109; Mil. 89. Em Dom. 43. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 132: “¿con qué derecho, siguiendo qué costumbres, con qué precedentes presentaste una ley, de forma nominal, contra la vida de un ciudadano no condenado? Las leyes sagradas, las Doce Tablas prohíben que se legisle contra ciudadanos 76 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSo imperium, males ainda maiores teriam ocorrido. Em vez de se lançar contra os inimigos externos, preferia avançar contra a pessoa, a família e os bens dos cidadãos romanos, em ágil coleção de proezas nefastas que dele fizeram um tribuno pernicioso, malvado, libertino, ímpio, audaz, criminoso: a res publica não permitiria ser aviltada por muito mais tempo320. Cícero estava certo. Em 52 a.C., Milão assassinou Clódio. Para o orador, defensor do réu, era costume permanente da vítima recorrer à violência, de modo que “fue el agresor el que resultó derrotado; la violencia fue vencida con violencia o, mejor, la audacia fue reprimida con el valor”321. Para quem o primeiro passo na vida política fora incitar o povo e ascender ao poder, suas ações até podiam ser ditadas contra a pessoa de Cícero, mas, em última instância, era por ódio à austeridade, à honorabilidade, à república322.Não fogem à mira de Cícero os comparsas de Clódio, figuras proeminentes, embora celerados. Os cônsules Pisão e Gabínio aliaram-se aos inimigos da res publica e, por inveja e ambição, investiram contra o orador323. Em uma retórica hiperbólica, Cícero descreve Pisão como “o mais bestial e imundo dos monstros” (immanissimum ac foedissimum monstrum), que ousou considerar o exílio como motivo para insultos e ultrajes324; o mais abominável, mais cruel, mais falaz, mais marcado com as manchas de todos os crimes e desenfreio, afeito ao excesso de luxo e prazer, despudorado, enganador, hipócrita, insolente325. Pisão podia esconder sua crueldade, mas a res publica volta-se contra ele326. Pior do que Catilina, que queria massacrar o Senado, ele o suprimiu; aquele desejava pôr fogo às leis, este as ab-rogou; o vencido almejava aterrorizar a pátria, o famigerado magistrado a eliminou: se a ele realmente “se dá o nome de cônsul, a quem caberá aquele de ladrão, de pirata, de inimigo público, de traidor, de tirano?”327. Também Gabínio particulares: en eso consiste el “privilegio”. Nunca nadie lo propuso; no hay nada más cruel, nada más pernicioso, nada más intolerable para esta ciudad.”320 CÍCERO. Mil. 76; 87; Phil. VIII, 5, 16; Dom. 137.321 CÍCERO. Mil. 52; 30. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 497.322 CÍCERO. Har. resp. 43; 5.323 CÍCERO. Red. quir. 13.324 CÍCERO. Sest. 32; Pis. 21.325 CÍCERO. Dom. 23; Pis. 66-67.326 CÍCERO. Sest. 22; Pis. 64.327 CÍCERO. Pis. 15; 24. | 77 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOScompartilha de características tirânicas. É cobiçoso de benefícios pessoais, praticou numerosos atos de bandidagem e incapacidade328. Em eloquente auxese, Cícero define-o como “o homem mais abjeto de todos os nascidos, o mais criminoso, o mais impuro” (homini post homines natos turpissimo, sceleratissimo, contaminatissimo), que até seria bom, caso tivesse agido com os inimigos como se comportou em face dos cidadãos329.Referência costumeira em Cícero, os tiranos sicilianos são amplamente detalhados. Dentre todos, expressa estima por Hierão de Siracusa, cujo reinado produzira benefícios aos sicilianos, a ponto de lhe nutrirem afeição. Mas essa imagem positiva de um tirano justo e bom legislador busca servir de contraste retórico a Verres, acusado de numerosos ilícitos em seu governo na própria Sicília, quando teria feito o que nem os tiranos ousaram330. Como observa Grimal, Cícero traça uma história dos tiranos sicilianos e situa Verres ao lado de Dionísio, o Antigo, Fálaris de Agrigento e figuras mitológicas como Caríbdis, Cila e os Ciclopes, em um período um longínquo, quase legendário, marcado pela selvageria primitiva331. De fato, em toda a sua trajetória, ele agira com furtos, crimes, crueldade e infâmia332, mas foi na propretura na Sicília que afluíram atos perniciosos. O povo siciliano, que aprendera com seus maiores a tolerar injustiças para conservar os favores dos romanos, teriam suportado Verres se tivesse delinquido segundo uma medida humana (si humano modo). Porém, não foi possível aguentar tamanha,intemperança, crueldade, avareza, soberba, pois, com ele, perderam “todas sus ventajas, sus derechos, los favores que habían obtenido del Senado y del pueblo romano”333. Verres retorna com arbitrariedades eliminadas por Roma: perseguiu e matou cidadãos na prisão ou crucificados, inobstante implorassem seus direitos de homens livres; sujeitou inocentes a condições atrozes e julgou sobre coisa 328 CÍCERO. Red. sen. 11; Dom. 126; Prov. cons. 11.329 CÍCERO. Dom. 23; Prov. cons. 10.330 CÍCERO. Verr. II, 3, 15.331 GRIMAL, Pierre. Cicéron et les tyrans de Sicile. Ciceroniana, Roma, n. s. IV, Atti del IV Colloquium Tullianum (Palerme, 28 settembre-2 ottobre 1979), p. 63-74, 1980, p. 64-65; CÍCERO. Verr. II, 5, 143-146.332 CÍCERO. Verr. II, 1, 34.333 CÍCERO. Verr. II, 2, 8-9. Cf. Discursos I. Trad. José María Requejo Prieto. Madrid: Gredos, 1990, p. 355-357.78 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSjulgada (de re iudicata iudicavisse), violando o direito334. Homem medíocre de males colossais, seus atos impelem pedidos de socorro aos patronos, aos cônsules, ao Senado, às leis e à administração da justiça (a patronis, ab consulibus, ab senatu, ab legibus, ab iudiciis petivisse)335. Verres não é um réu comum: aludimo-nos “a un salteador del pudor, no a un sacrílego, sino a un enemigo de lo sagrado y de todo lo que sea religión, no a un asesino profesional, sino al más cruel carnicero de ciudadanos y aliados”; nunca houve réu com tais características336, de modo que um tirano libidinoso e cruel (tyrannum libidinosum crudelemque), a reunir em si todos os vícios, é um infortúnio para qualquer advogado337.Dionísio, o Antigo é o tirano mais mencionado. Representa o arquétipo do déspota por ter cometido todas as espécies de atos abomináveis que podem ser reprovados na conduta de um tirano. Até filósofos perseguiu, sob seu jugo não houve direito ou amizade, restando-lhe uma vida solitária338. Por isso, Cícero vale-se de Dionísio para retratar um contemporâneo: Júlio César. Ambos são tiranos hábeis, intelectualmente brilhantes, mas dotados de natureza que os conduzem ao mal e à injustiça339. Tal como a Siracusa de Dionísio, Roma está sob o poder de César. A história siciliana mostra a Cícero “a realidade de uma teoria”, fornecendo um exemplo a comprovar que não existe mais res publica entre os romanos340. Após a morte de César, não é mais necessário dissimular. Ele é enumerado ao lado de Fálaris, Alexandre de Feres e Dionísio como “o nosso” (hic noster) tirano341. No De officiis, Cícero defende abertamente o direito de depor o déspota, justificando o tiranicídio como verdadeiro dever:Não existe verdadeiramente laço social algum en-tre nós e os tiranos [nulla est enim societas nobis cum tyrannis], verifica-se, antes, uma oposição absoluta, 334 CÍCERO. Verr. II, 4, 116; 1, 7-14; 96; 3, 130; 4, 87; 2, 81; 5, 103.335 CÍCERO. Verr. II, 5, 32; 3, 72.336 CÍCERO. Verr. II, 1, 9. Cf. Discursos I, op. cit., p. 274; Verr. II, 3, 143.337 CÍCERO. Verr. II, 1, 82; 2, 77; 3, 5; 4, 112; 2, 192.338 CÍCERO. Nat. D. III, 81-84; Tusc. V, 57 et seq.339 GRIMAL. Cicéron et les tyrans de Sicile, op. cit., p. 67-71.340 Ibid., op. cit., p. 73 (tradução nossa).341 CÍCERO. Off. II, 25-26. | 79 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSnem tampouco será contrário à natureza roubar um homem, se tal te for possível fazer, que é honesta-mente correcto ser morto [quem est honestum neca-re]. Além disso, toda esta raça funesta e amaldiçoa-da deve ser banida da convivência dos homens.342Como parte doente do corpo humano, o tirano é fragmento necrosado do corpo social e deve ser extirpado para a sobrevivência da res publica. Uma conclusão não dissonante de analogias similares de outros filósofos antigos, como Platão. Aliás, já os gregos não tributavam honrarias próprias de deuses aos homens que davam morte aos tiranos?343O derradeiro líder tirânico a preocupar Cícero foi Marco Antônio e, por suas ordens, acabaria morto. Ele submete o povo a uma violência quase fatal (vis quaedam paene fatalis), é um impuro bandido que impõe horrível e crudelíssima dominação (impuri latronis feremus taeterrimum crudelissimumque dominatum), indigna e desonrosa344. Esse insensato gladiador (gladiatoris amentis) impôs leis por meio da violência, portanto, inválidas; dissipou e prodigou os fundos públicos; dispersou a assembleia do povo; assediou o Senado; fez vir legiões para oprimir a res publica (opprimendam rem publicam); praticou rapinas; heranças que fez dar, recebeu; ameaçou e ultrajou clientes; difamou mulher honrada para satisfazer interesses escusos e acusou nobre de culpa pelo fato; mandou degolar homens intrépidos e ótimos cidadãos, fazendo o povo temê-lo tal como a morte ou a peste (capitalem et pestiferum)345. Essas são razões suficientes para compará-lo a Tarquínio e para admitir a sua aversão aos fundamentos da res publica346. Cícero manifesta consternação por um suposto filho da civitas voltar-se contra ela com a ajuda de estrangeiros, o que requer o combate não de um malfeitor, mas de uma fera inumana e monstruosa (sed cum immani taetraque belua), pois não se pode tolerar um imprudente347. Lutar contra Antônio é lutar contra a escravidão e em prol 342 CÍCERO. Off. III, 32. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 125 (adaptado).343 CÍCERO. Mil. 80.344 CÍCERO. Phil. III, 29; 34.345 CÍCERO. Phil. V, 10; VI, 3; XIII, 5; II, 99; III, 4 ; IV, 3.346 CÍCERO. Phil. III, 9-11; IV, 14.347 CÍCERO. Phil. Phil. XIII, 18; IV, 12; III, 12. Cf. Filípicas, op. cit., p. 76.80 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSda liberdade e da paz. Nada há de satisfatório em um regno348 como o então vivido. Com uma estupidez (stultitiae) que excede a todos, restará excluído, apartado, segregado (exclusit, distraxit, segregavit) da república, pois esse é o destino de todos os tiranos, a culminar na morte, tal como César349. Esses exemplos de figuras tirânicas permitem ver a degeneração da constituição mista. Em um primeiro momento vimos a passagem da monarquia para a tirania, agora vemos o declínio da república em favor do despotismo. Nosso autor se vale da história romana – em dois tempos: o passado e o presente – para dela extrair a tipologia das formas de governo e identificar a melhor entre todas as formas. Cientes disso, vejamos outro tipo político.Relembremos que, na arqueologia da Realeza, Cícero já indicara a presença do elemento aristocrático: os antigos perceberam como o governo é melhor quando agregado da autoridade (auctoritas) dos melhores cidadãos (optimates), com a criação do Senado na época de Rômulo. Mas ainda não era o momento de um governo aristocrático. O povo rejeitou a administração senatorial após a morte de Rômulo e um interrex foi nomeado até a aclamação de um novo monarca350. Quando a tirania de Tarquínio se tornou insuportável, foram alguns cidadãos – os mais virtuosos e dignos – que lideraram a derrubada do rei, guiando o povo para a libertação da cidade e a instauração da República. Buscou-se proteger a liberdade retomada e limitar o poder351. Para tanto, as instituições foram reformuladas: surgiram os cônsules, o dictator e o Senado começou a ascender:[...] el senado mantuvo la república de manera que, siendo libre el pueblo, unas pocas cosas las hiciera el pueblo y la mayoría se rigieran por la autoridad, la decisión y la tradición del senado, y que unos cónsules tuvieran, sólo por un año, una potestad que por sí misma y de derecho era como la de los reyes, y se observaba decididamente, lo que era muy importante para asegurar el poder de los no-348 CÍCERO. Phil. VIII, 12.349 CÍCERO. Phil. II, 19; V, 29; Off. II, 23.350 CÍCERO. Rep. II, 15; 23-24.351 CÍCERO. Rep. II, 54; TITO LÍVIO. Ab urbe condita I, 58-60. | 81 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSbles, que los acuerdos de los comicios populares no valieran si no los aprobaba,la autoridad de los pa-dres del Senado. También se instituyó en esa época el dictador, unos diez años después de los prime-ros cónsules, en la persona de Ticio Larcio, y esa forma de imperio se consideró nueva y parecida al poder de los reyes. Sin embargo, todo se regía por la autoridad suprema de los hombres principales, no oponiéndose el pueblo, y en esa época figuras enér-gicas, con el imperio supremo como dictadores o cónsules, realizaron grandes hazañas militares.352 No Pro Sestio, Cícero resume a formação da constituição mista pelos antepassados, nela avistando um traçado aristocrático originário no qual os melhores, reunidos no Senado, assumem o posto de defensores da res publica:Creedme, la única vía para alcanzar la estima, la consideración y los honores es ésta: ser alabados y apreciados por los hombres de bien, sabios y bien nacidos, y conocer la constitución tan sabiamente establecida por nuestros antepasados; éstos, al no haber podido soportar el poder de los reyes, crea-ron magistrados anuales aunque a la cabeza del Es-tado pusieron como consejo permanente al senado; los miembros del consejo eran elegidos por todo el pueblo y el acceso a este estamento (que es el más importante) estaba abierto a los méritos y virtudes de todos los ciudadanos. Colocaron al senado como guardián, protector y defensor de la República. Su intención era que los magistrados se sirvieran de la autoridad de este estamento y que, en cierto modo, fueran ministros de este importantísimo consejo. Era también su deseo fortalecer al propio senado con el prestigio de los estamentos más próximos así como proteger y acrecentar la libertad y los privile-gios de la plebe.353352 CÍCERO. Rep. II, 56. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 115.353 CÍCERO. Sest. 137. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 380-381.82 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSA aristocracia é o governo dos melhores cidadãos, os optimates, considerados como tais por serem sábios e virtuosos. O critério, portanto, afasta a riqueza, que leva à soberba tirânica. O governo dos opulentos é forma degenerada. Somente os superiores por seu valor e espírito podem ser considerados como optimates e impor-se aos mais débeis354. A aristocracia aparece, então, como forma moderada entre a fraqueza da realeza, pois fragmenta a reunião unipessoal de poderes, e a imprudência da democracia, pois atribui direito segundo o mérito de cada um355. No entanto, isso não a imuniza ao declínio. Uma vez mais, a história de Roma contém um exemplo de modificação política, agora de uma aristocracia para uma oligarquia. Por Cipião, relata Cícero o episódio da nomeação de dez homens (decem viri), entre os mais sábios, atribuindo-lhes poderes máximos, sem sujeição à provocatione ad populum, para estabelecerem novas leis. Eles redigiram, com grande equidade e prudência (aequitate prudentiaque), dez tábuas de normas. Para o ano seguinte, foram eleitos outros, que acabaram tão elogiados pela mesma fides e iustitia. No terceiro ano, os decênviros permaneceram, sem nomear sucessores, e passaram a governar com poder absoluto, segundo seus caprichos, com crueldade e avareza (libidinose omni imperio et acerbe et avare). A constituição (statu rei publicae), nesse momento, não contava com o equilíbrio entre as ordens de cidadãos (non esset in omnes ordines civitates aequabilis), pois suspensas as magistraturas e a provocatio. A res publica dependia de alguns cidadãos principais (principes). Produziu-se, então, uma grande perturbação revolucionária (maxima perturbatio et totius commutatio), eclodindo a reação do povo em um episódio similar ao de Lucrécia, com a morte de Virgínia em razão de ultraje de um dos colegiados356. Esse relato exemplifica a formação de uma oligarquia, o governo de uma facção (factio) que, por riqueza, linhagem ou outro critério, domina a res publica, ainda que se denominem optimates357. Quando se atende a interesses pessoais, e não aos do povo, como na oligarquia, tem-se uma forma de tirania. Não há verdadeira res publica quando a cidade está subjugada por uma facção (factionis potestate). 354 CÍCERO. Rep. I, 34, 51. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 70.355 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 147.356 CÍCERO. Rep. II, 61-63.357 CÍCERO. Rep. III, 23. | 83 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSFoi assim em Atenas com os Trinta e em Roma com os decênviros. Em ambos os casos, nada era do povo (populi res non erat)358.Na democracia, por sua vez, a cidade é governada pelo povo (civitas popularis). Como a maioria dos filósofos antigos, Cícero nutre uma visão negativa do governo popular. Entre todas as formas de governo primárias, acredita que a democracia é a menos digna de aprovação (quod sit probandum minus) ou menos desejável, pois, quando o povo detém todo o poder e governa segundo o seu arbítrio, pode até se falar em liberdade, mas o que há é libertinagem (dicitur illa libertas, est vero licentia)359. Quando todo o poder está com o povo, a multidão (multitudo) pode condenar à morte qualquer pessoa, roubar, requisitar, malbaratar tudo. Nesses termos, o domínio da multidão (multitudinis dominatu) é uma forma de tirania pior (taetrior) que as precedentes360. Com efeito, nela sequer há verdadeiro povo, vez que ausente o consensu iuris. É sim possível que o povo assuma o poder após matar ou expulsar um tirano quando, então, comporta-se com moderação, desejando conservar a república. No entanto, essa situação é excepcional. O comum é o povo retirar o poder de um rei justo ou tomar gosto pelo sangue dos melhores (optimatium sanguinem gustavit), submetendo toda a res publica ao seu próprio capricho. Nesse ponto, Cícero traduz passagem de Platão sobre a desmedida da liberdade do povo, que chama de déspotas a todos os incomplacentes com seus anseios361. Essa licença, considerada pela multidão ensandecida a única liberdade possível, surge tal como o tirano singular, pois, “a exagerada liberdade leva, tanto para os povos quanto para os particulares, a uma excessiva escravidão”362. Com efeito, a potestade popular absoluta, como a dos atenienses, converte-se em loucura e libertinagem pestífera (ad furorem multitudinis licentiamque conversam pesti)363, tende a declinar em tirania da multidão, decorrente do colapso da lei e da ordem, da desintegração de toda autoridade364. Nesse quadro, é recorrente o povo 358 CÍCERO. Rep. III, 44.359 CÍCERO. Rep. III, 47; I, 42; III, 23.360 CÍCERO. Rep. III, 45.361 CÍCERO. Rep. I, 65 et seq; PLATÃO. República 562d et seq.362 CÍCERO. Rep. I, 68.363 CÍCERO. Rep. I, 44.364 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 147.84 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSsublevado (indomito), selvagem (immani), eleger um líder (dux) contra os principais, alguém audacioso, desonesto, que passa a perseguir ferozmente as pessoas beneméritas da res publica. Ele premia o povo com bens próprios e alheios, confere a si todo o poder, que se torna permanente, a exemplo de Pisístrato em Atenas. Esses líderes convertem-se em tiranos da mesma estirpe daqueles que o elevaram ao poder. Cícero acredita no sucesso da superação da democracia por optimates, mas alerta que, suplantada por outros, podem dar origem a novas espécies de tirania, pois as formas de governo primárias são instáveis e as degenerações são dinâmicas365. Mesmo quando rege um povo não enlouquecido, existindo então república366, a democracia é preterida pelas demais formas de governo. A monarquia aparece como um tipo superior em diversas passagens do De re publica367, embora com reservas, pela contradição com a ideia de res populi. Porém, esta é uma questão à qual nos dedicaremos somente adiante. O que importa destacar agora é como a instabilidade dos diferentes tipos simples está centrada no grau de liberdade sustentado. A monarquia e a aristocracia oferecem limitadíssima,liberdade, enquanto a democracia, em demasia. Nesta última, a libertas acarreta igualdade a ponto de tornar-se nivelamento, ou seja, é liberdade com igualdade injusta, por não permitir distinções de dignidades368, ou melhor, licentia. Os atenienses, que “podem reconhecer o significado de civilidade, mas não a praticam”369, comprovam os perigos desse tipo de governo370. Essas longas considerações sobre as qualidades, os defeitos e as transformações das diferentes constituições permite-nos constatar um certo distanciamento de Cícero em relação a Políbio. É certo que Cipião fora amigo do historiador e, como personagem da obra, refere-se a dois aspectos centrais da teoria polibiana, a saber, o ciclo das constituições e a metáfora biológica do nascimento, crescimento e maturação371. No entanto, 365 CÍCERO. Rep. I, 68. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 83.366 D’ORS. Nota 320. In: Sobre la república, op. cit., p. 143.367 Vide CÍCERO. Rep. III, 46-47.368 CÍCERO. Rep. I, 53. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 71; WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 147-148; FIORAVANTI. Constitución, op. cit., p. 20.369 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 149-152 (tradução nossa).370 CÍCERO. Rep. I, 5; Leg. III, 26; Verr. II, 2, 7; Flac. 9 et seq; 57; 62-63; 71; Sest. 67, 141.371 CÍCERO. Rep. I, 45; 64-65; II, 45; e II, 3, respectivamente. | 85 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSse aceita parcialmente a interpretação de Políbio, mantém distância372. Por exemplo, no De re publica I, 45, Cícero emprega a expressão quasi circuitus, ou seja, fala em um ciclo imperfeito, expressando não acreditar em um curso único, natural e unidirecional a reger o movimento de degeneração373. Ademais, se para Políbio o declínio é inevitável e a melhor forma de governo é aquela que goza de uma estrutura de retardamento máximo do processo degenerativo, para Cícero uma cidade deve ser constituída para durar eternamente (debet enim constituta sic esse civitas ut aeterna sit), a morte da res publica não é necessária como para o homem (itaque nullus interitus est rei publicae naturalis, ut hominis, in quo mors non modo necessaria est)374. Isso não é negar qualquer perecimento, pois é produto da ação humana, mas sim que a melhor constituição deve sempre tentar a maior durabilidade possível, deve almejar a eternidade. E, nesse processo, Cícero nota o peso da degeneração moral, como discutiremos em breve375. Por fim, se em Políbio não identificamos grandes inspirações filosóficas, em Cícero, para além de Platão, irrompe avizinhamentos de Aristóteles em preceitos basilares, como o supramencionado instinto social natural originário; a aequabilitas, justiça como proporcionalidade a unir os diferentes componentes sociais; e a já indicada maleabilidade histórica na sucessão das formas políticas376. Essas diferenças decorrem dos objetivos distintos de ambos. Políbio preocupara-se em analisar a evolução de Roma conforme princípios gerais, enquanto Cícero os extrai da história romana, empenhando-se em conectar ideia e realização histórica377:A diferença, sugiro, está enraizada em uma dife-rença de propósito. Políbio procurou explicar por que os romanos ganharam um império mundial. 372 ATKINS, Jed. W. Cicero on politics and the limits of reason: The Republic and Laws. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 94-96.373 LINTOTT. The theory of mixed constitution at Rome, op. cit., p. 81-82.374 CÍCERO. Rep. III, 34; SCHNEIDER, Maridien. Cicero ‘Haruspex’: political prognostication and the viscera of a deceased body politic. Piscataway: Gorgia Press, 2013, p. 63-64.375 SCHNEIDER. Cicero ‘Haruspex’, op. cit., p. 66.376 LINTOTT. The theory of mixed constitution at Rome, op. cit., p. 81-82. Ver também Id. The constitution of Roman Republic. Oxford: Clarendon Press, 1999, p. 194-195.377 Id. The theory of mixed constitution at Rome, op. cit., p. 84.86 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSVisualizando a constituição como uma causa, Polí-bio a viu como um mecanismo notavelmente bem equilibrado para assegurar a estabilidade interna e o sucesso externo. Cícero, em contraste, apresenta a constituição romana como um objetivo que foi al-cançado no passado através dos esforços de muitos romanos e permanece como modelo para o futu-ro. Entretanto, por mais que Cicero olhe para trás com nostalgia em relação ao passado, ele também tem um objetivo prático. Ao lembrar aos romanos do que perderam, mostra-lhes como recuperá-lo. Para esse propósito, ele configura o Estado roma-no como modelo, exemplum, que abrange todos os exempla tradicionais de pessoas que serviram ao Estado.378Em outros termos, a construção ciceroniana das formas de governo, conquanto tenha em vista Platão, Aristóteles e Políbio, é primariamente romana379, porque toma a tradição política grega e introduz nela aspectos culturais genuinamente romanos, vide o direito, enquanto iuris consensus e utilitas communione380, a partir da história da civitas. Cícero insere um substrato histórico-axiológico original na tipologia política, que penetrará a sua concepção de melhor constituição. Precisamos, então, começar a explicitar os contornos assumidos por esses elementos políticos e históricos na ideia ciceroniana de res publica.378 ASMIS, Elizabeth. A new kind of model: Cicero’s Roman constitution in De Republica. American Journal of Philology, v. 126, n. 3 (Whole Number 503), p. 377-416, fall 2005, p. 378 (tradução nossa).379 LINTOTT. The theory of mixed constitution at Rome, op. cit., p. 80.380 GRILLI, Alberto. L’idea di stato dal De re publica al De legibus. Ciceroniana, v. 7 (Atti del VII Colloquium Tullianum - Varsavia, 11-14 maggio 1989), p. 249-262, 1990, p. 252. | 87 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSCAPÍTULO 2LINEAMENTOS POLÍTICO-JURÍDICOS DA RES PUBLICA ROMANA COMO A MELHOR CONSTITUIÇÃOcedant arma togae 381No humanismo de Cícero382 sobressaem o direito e a política como os pilares da vida do cidadão, tendo a serviço destes alicerces a filosofia e a eloquência. Ele deu a todas elas novas perspectivas ao unir a teoria grega com a experiência político-jurídica383. Com efeito, a tradição política helênica era, aos olhos romanos, excessiva abstração, e, para ser-lhes compreensível e útil, precisava recuperar aquilo que “perdeu na subida do sensível para o inteligível”384. Como vimos no capítulo anterior, Cícero, como filósofo, orador e magistrado385, acredita que entrever tais categorias a partir da história de Roma – e também da história dos gregos – é o caminho mais coerente e seguro 381 CÍCERO. De officiis I, 77. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 43: “Que as armas cedam à toga”.382 SALGADO, Joaquim Carlos. O humanismo de Cícero: a unidade da filosofia e da vida política e jurídica. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Série “Estudos Sociais e Políticos”, Edição Comemorativa dos 120 anos da Faculdade de Direito da UFMG (1892 - 2012), n. 40, p. 157-176, 2012.383 SALGADO. A ideia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 152.384 Id. O humanismo de Cícero, op. cit., p. 159.385 Foi Cícero um jurista? Para D’Ors seria mais preciso defini-lo como um orador com certa cultura jurídica. Ele alerta, por exemplo, que a clássica obra Cicerone giureconsulto, de Emilio Costa, não revela real um labor jurisprudencial, apenas sistematiza dados para o estudo do direito romano encontrados em seus escritos. Arangio-Ruiz defende a existência de duas perspectivas: jurisconsulto no sentido formal, a atividade prática doutrinária daquele tempo (respondere, cavere, agere, vide De or. I, 212), o que o próprio Cícero deixou claro não ser; e em sentido material, o vasto conhecimento do direito necessário a um advogado e bom orador, que permeou os seus textos com reflexões jurídicas. Alinhando-se,a essa segunda via, Zyl aponta em Cícero o desenvolvimento de uma verdadeira “enciclopédia de filosofia do direito” em suas obras, a partir do material filosófico grego, mas de espírito tipicamente romano. Com isso, ele poderia ser chamado de “o primeiro autêntico filósofo do direito”, segundo Fassò. Cf. COSTA, Emilio. Cicerone Giureconsulto. 2. ed. Bolonha: Nicola Zanichelli Editore, 1927, v. 1; D’ORS, Álvaro. Introducción. In: CÍCERO. Las leyes. Trad. Álvaro D’Ors. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1953, p. 7 (inclusive nota 1); ARANGIO-RUIZ, Vicenzo. Cicerone giurista. Ciceroniana, Roma, v. 1, n. 2, p. 3-19, 1959, p. 3-4; ZYL, D. H. van. Cicero as a legal philosopher. In: Huldigingsbundel Paul van Warmelo. Praetoria: Universiteit van Suid-Afrika, 1984, p. 255; FASSÒ, Guido. História de la filosofía del derecho: Antigüedad y Edad Media. 3. ed. Madri: Pirámide, 1982, v. 1, p. 94.88 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSporque aliado intrinsecamente com o plano prático da realidade. Desse modo, na sua perspectiva, “a retórica ensinava os métodos para persuadir e a dialética para julgar, a filosofia iniciava à dúvida”386, e a melhor constituição perpassava ideia e história. O ponto de partida para compreender esse elo são seus elementos morais.2.1. Da natureza humana à moralNa discussão sobre as formas de governo em Cícero esboçamos algumas breves linhas sobre a origem da sociedade, como marco inicial para a história política de Roma aos olhos de nosso autor. Contudo, restou-nos indicar certos pressupostos morais da teoria política ciceroniana dos quais decorrem parte dos componentes da ideia de res publica. Embora enfrentemos o problema da lei natural no início da Parte II, precisamos já assinalar certos aspectos da relação primária entre razão e natureza.Como parte do universo, também o homem é partícipe da razão que o ordena. Mas algo o diferencia dos demais seres. A exigência fundamental da natureza é que se aja de acordo com ela387. Ocorre que essa conformidade, no homem, é uma relação da alma consigo mesma, o que faz dele um ser à parte, transcendente, sem medida comum com os demais. A alma consulta-se a si mesma e, assim, identifica o bem e o mal. Logo, a ação moral distingue-se de todas as demais ações segundo à natureza, sendo buscada por si mesma, apenas por sua conformidade à alma. Ora, isso pressupõe uma escolha, ou seja, a especificidade da natureza do homem é a racionalidade, deixando de ser mera espécie do racional cósmico. Para ele, seguir a natureza é buscar a virtude:Cícero continuará a dizer que seguir a natureza é seguir a virtude; mas para ele não é mais a natureza que é virtuosa, quer dizer, a natureza geral, legisla-dora e soberana de todos os seres; é a virtude que é natural, a saber, é a virtude que exprime a natu-386 MOATTI, Claudia. La raison de Rome: naissance de l’esprit critique à la fin de la République. Paris: Seuil, 1997, p. 162 (tradução nossa).387 CICERO. Off. III, 35. | 89 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSreza própria da alma humana. A alma tornou-se o seu próprio universo e não é ela mesma senão em si própria.[...] Refletindo-se sobre a racionalidade do universo e sentindo-se como sua, a razão humana entrou em si e separou-se do ser universal. Este ser tornou-se diferente e estranho, e a razão sente a sua liberdade alienada nele. Firmando-se em si mesma, põe o seu próprio fim em si e não alhures, e não reconhece outra racionalidade às coisas e aos atos senão a que tira de si própria.388Segundo Valente389, ao situar a moral no domínio da ação concreta, Cícero reconhece ser pela virtude que a natureza humana será desenvolvida. Nesse trajeto, encontra o problema filosófico do útil: pode o honesto, isto é, aquilo que é conforme à natureza, estar em contradição com o que é útil?390 O filósofo tem como solução, possivelmente inspirada em Panécio, a união entre ambos: o conflito é aparente. A natureza exige que se faça apenas o que esteja de acordo com ela, o que, para o homem, cuja natureza é a racionalidade, significa desenvolvê-la pela virtude. O útil designa aquilo que a natureza exige, sendo superficiais, aparentes ou falsos todos os outros empregos do termo. Portanto, aquilo que é moralmente bom é a busca da virtude, como bem, e isso “é sempre útil, porque conforme à natureza e, inversamente, porque a natureza é conforme à virtude”391. Nas palavras de Cícero: “Nada pode efectivamente ser útil que previamente não seja honesto – não é honesto porque útil, antes, útil porque honesto”392.A alma inclina-se naturalmente à virtude porque é o que há de mais conforme à natureza: “as sem*ntes das virtudes são inatas aos nossos gênios naturais” (sunt enim ingeniis nostris semina innata virtutum)393. No caso do homem, a natureza “nos impôs um único papel de maior excelência e 388 VALENTE, Pe. Milton. A ética estoica em Cícero. Caxias do Sul: EDUCS; Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1984, p. 74-76.389 Ibid., p. 90390 CICERO. De officiis III, 7. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 117.391 VALENTE. A ética estoica em Cícero, op. cit., p. 80 e 88.392 CICERO. Off. III, 110; 83.393 CÍCERO. Tusc. III, 2.90 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSsuperior a todos os outros seres vivos”394. Ser feliz só pode ser realizar esse papel, quer dizer, ser virtuoso: “uma vida deverá ser feliz, o que apenas pode verificar-se numa vida conforme à moral”395. Em outras palavras, o homem só é verdadeiramente feliz quando atinge a sua utilidade suprema, isto é, quando desenvolve a sua natureza e atinge a plena harmonia, o que significa nada mais do que desenvolver a sua racionalidade, agir segundo as virtudes396.É necessário ressalvar que a concepção ciceroniana de virtude difere do estoicismo em certa medida. Embora admita apenas um único bem supremo, aceita a noção de coisas convenientes e preferíveis, desde que estejam na linha do bem supremo. O sábio tentará unir o preferível ao bem moral sempre que puder, mas ciente de que nada acrescentará à virtude, pois ela é plena em si mesma397. A virtude é o bem supremo398, mas isso não faz inferiores a amizade ou a justiça. Cícero cria uma nova categoria de ações morais, as que devem ser “procuradas por si mesmas”, distanciando-se do rigor da ética estoica:Com efeito, Cícero, e este é o aspecto crítico nega-tivo de sua Ética, julga o bem supremo dos estoicos como um conjunto em demasia exigente e inepto: em demasia exigente, porque abstrato e pratica-mente fora da vida humana e de seus “deveres”. Cícero não admite que tudo o que o homem sente como dever seja estabelecido por um padrão infe-rior à finalidade moral. E, como também não admi-te que o bem supremo seja acrescido de bens infe-riores, faz que participem da noção de fim último todas as ações que encontram em si mesmas a pró-pria satisfação, por corresponderem às inclinações naturais, ou melhor, às aspirações ideais da razão e do coração humano. As virtudes sobem, assim, da categoria dos atos indiferentes ou úteis à de “ações 394 CICERO. Off. I, 97. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 50 (adaptado).395 CÍCERO. Fin. III, 28. Cf. Textos filosóficos, op. cit., p. 382.396 VALENTE. A ética estoica em Cícero, op. cit., p. 90-93. Ver a continuidade de CÍCERO. Tusc. III, 2.397 CÍCERO. Fin. IV, 59; VALENTE. A ética estoica em Cícero, op. cit., p. 102-103.398 CÍCERO. Amic. 104. | 91 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmoralmente belas”. Essa transferência é o aspecto positivo da construção ciceroniana que coroará a regra da humanitas.399Esse novo tipo de virtude não pode ser obtida na placidez solitária do sábio estoico, mas na vida junto a outros homens. Por isso, a moral implica a busca do interesse comum, e revela-se imoral a procura por um interesse particular que contrarie, pois volta-se contra o próprio homem. Se,o interesse comum é o que tende para o humano, ele é o útil:O indivíduo já não é o juiz soberano do que é con-forme ou conveniente à sua natureza; mas o que ele tem de comum com os outros julga nele toda a mo-ralidade e utilidade, e julga-a em função dos outros homens. A natureza, fonte da moralidade, já não é concebida apenas como forma metafísica, partici-pação no Logos do mundo, e a moralidade já não é a ordem que fixa ao homem o seu lugar no universo. Essa natureza comum é a comunidade humana, e a moralidade define-se pela função de cada indivíduo nesta comunidade.400 O que há mais de acordo com a natureza é a comunidade do gênero humano (quae maxime est secundum naturam, humani generis societatem). Logo, a lei divina e humana concorrem para que nenhum dano seja infligido ao vínculo social (incolumem esse civium coniunctionem)401. Eis a amizade e a justiça:Por essa razão, todos os homens deveriam ter o se-guinte objectivo: que aquilo que é útil para cada um o seja também para benefício de todos. Se alguém o cobiçar apenas para si próprio, então todos os la-ços sociais que unem os homens entre si se dissol-399 VALENTE. A ética estoica em Cícero, op. cit., p. 110-111.400 Ibid., p. 118-119.401 CICERO. Off. III, 21; 23.92 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSverão. Além disso, se a natureza prescreve que um homem deveria desejar considerar os interesses do seu semelhante, quaisquer que sejam, pela simples razão de ser ele um homem, é necessário, segundo a mesma natureza, que aquilo que é útil para todos de uma certa maneira o deva ser também partilha-do em comum. Visto que assim é, somos conse-quentemente regulados por uma única e mesma lei da natureza; se isto é verdade, estamos, então, certamente impedidos pela lei natural de agir com violência contra uma outra pessoa. A primeira asserção é, com efeito, falsa, sendo a última, por conseguinte, verdadeira. [...] A fraternidade, que se estabeleceu entre os homens, e que eles subverte-ram, foi estabelecida por aqueles, sendo o laço, que mais estreitamente une a comunidade, a convicção de que é mais adverso à natureza um homem rou-bar o seu semelhante, para seu próprio proveito, do que suportar qualquer perda que venha a suceder, seja ela exterior ou infligida ao nosso corpo ou até à nossa própria alma, na condição de esta perda não se relacionar com a justiça – é esta realmente a pri-meira de todas as virtudes, a rainha de todas elas [iustitia enim una virtus omnium est domina et regina virtutum].402Na infinita societate generis humani, estabelecida pela própria natureza, unem-se amizade e justiça403. No sentimento de que tudo é comum entre os homens404, estes confluem esforços para, por sua inteligência e força, transformarem a matéria inanimada em benefício comum405. Com efeito, “a natureza não ama nada de solitário”, sendo, destarte, natural que os homens de bem se amem e se procurem”406. Ademais, a justiça garante o dever de cultivar, conservar e salvaguardar (colere, tueri, servare) o laço social, uma vez 402 CICERO. Off. III, 26-28. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 123-124 (adaptado).403 CÍCERO. Amic. 20.404 CICERO. Off. I, 21; 51.405 CICERO. Off. II, 12.406 CÍCERO. Amic. 88; 50. | 93 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSque, na vida coletiva, deve-se manter uma certa medida (modus) e uma certa ordem (ordinem)407.Assim, a moralidade encontra na “conservação do laço social o seu critério e o seu fim”408. Nas palavras de Valente, a razão desdobra-se em “lei do gênero humano sob a forma de vínculo social”, e a natureza humana se desdobra “em universo humano, em substância ética, sob a forma da sociedade”409. Das bases da moralidade revela-se o instinto de união (coniunctionis appetitus), diverso do instinto gregário animal pois lastreado na razão manifesta na linguagem, como sinalizamos no início das discussões sobre as formas de governo. No acordo da moral consigo mesma e dos homens entre si, isto é, somadas às virtudes morais que conduzem à justiça, surge a sociedade como locus próprio do ser humano410. Vale dizer, ao contrário do estoicismo em geral, para Cícero, o universo próprio do homem não é o pensamento, ou a communitas, como tendência social primitiva. É a societas, como fruto do trabalho humano, no qual um homem vive para o outro, exercendo sua racionalidade, segundo as virtudes, que, reguladas internamente pela justiça, colaboram para o “dever moral social”. Reiterando o contraste com o estoicismo, que se dirige ao sábio e ao dever perfeito, reto (perfectum officium rectum), por ele alcançável no pleno acordo consigo mesmo, Cícero dirige-se ao “homem de bem”, com o dever médio ou comum (officium medium), cujo cumprimento se dá segundo uma razão provável (ratio probabilis)411. Os deveres tratados no De officiissão precisamente aqueles que os Estóicos denomi-nam médios (media), isto é, comuns e acessíveis (communia et late patent); muitos os desempenham por sua excelência intelectual e sua progressiva dedicação ao estudo. Porém, aquele dever que cha-mam recto é perfeito e absoluto e, como dizem, 407 CICERO. Off. I, 17; 149.408 VALENTE. A ética estoica em Cícero, op. cit., p. 120-121.409 Ibid., p. 144.410 CICERO. Off. I, 11-15. Remetemos o leitor às reflexões do início deste capítulo, que complementam o presente.411 CICERO. Off. I, 7-8; VALENTE. A ética estoica em Cícero, op. cit., p. 126.94 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS“satisfaz todos os requisitos”: a ninguém pertence, excepto, ao homem sábio.412Officium, como alertara Ático a Cícero, era termo já utilizado em Roma na vida pública. Mas o Arpinata estava ciente. O kathekon (καθήκον) grego, transposto para a cultura romana, “convém estupendamente” (praeclare convenit) para designar uma noção conectada ao homem concreto, cidadão, dedicado à civitas413. Como ressalta Lévy, foi uma apropriação intencional: kathekon não integrava o vocabulário institucional grego, de modo que Cícero o assimila, ineditamente, a uma filosofia do dever indissociada do mundo da cidade414. O mesmo ocorreu com a oikeiosis (οίκείωσις), o movimento pelo qual todos os seres vivos procuram ficar junto aos outros. Pelo impulso de conservação, buscam viver de acordo com a sua natureza, o que, para o homem, é aprimorar a razão. Para tanto, une-se a outros, formando a família e a sociedade política: a oikeiosis do homem é ele mesmo. A tendência natural para a interrelação “faz com que um homem na presença de outro homem sinta, só pelo facto de ser homem, que não está perante um estranho”. É pela adaptação a si mesmo que o homem se torna o que é: a oikeiosis garante-lhe a consciência de sua constituição e da sua própria natureza, qual seja, de que “somos, de facto, naturalmente aptos para a formação de grupos, de assembleias, de cidades”415. Os deveres aparecem então como mecanismos de ligação entre a oikeiosis conservativa e o agir humano: eles determinam ações conforme a natureza, dentre as quais, atos basilares para a vida em sociedade. Agindo moralmente, o homem prospera a sua natureza, realiza seu fim universal, o que significa agir justamente416:412 CICERO. Off. I, 14. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 119 (adaptado).413 CICERO. Att. XVI, 11, 4; 14, 3.414 LÉVY, Carlos. Cicero Academicus: recherches sur les Académiques et sur la philosophie cicéronienne. Rome: École Française de Rome, 1992, p. 523-524. O autor aponta que o termo officium já era utilizado frequentemente por Plauto e Terêncio (vide Adefos 68-70) como expressão de dever moral. Ver Off. I, 8; Acad. post. I, 37 e 41. Sobre o kathekon estoico, DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres VII, 107-108.415 CICERO. Fin. III, 62-63. Cf. Textos filosóficos, op. cit., p. 402-403; LÉVY. Cicero Academicus, op. cit., p. 526-527; BERNARDO, Isadora Prévide. O De Re Publica, de Cícero: natureza, política e história.,215f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2012, p. 21-25; VALENTE. A ética estoica em Cícero, op. cit., p. 45.416 CICERO. Fin. III, 20; BERNARDO. O De Re Publica, de Cícero, op. cit., p. 23-26. | 95 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSOs deveres têm, assim, o justo, entendido no senso lato, por origem e por fim, sob o mesmo título que o honesto, o que equivale a identificar o justo e o honesto.A moralidade não se esgotou por esse fato. Se a virtude é o perfeito desenvolvimento da natureza e se este não se atinge senão no desenvolvimento da relação social, tender o homem para o seu fim universal é o mesmo que tender para a universali-dade humana, e lá somente desabrocha a sua mo-ralidade.417O homem não se satisfaz com aquilo que é. Ele pode se aprimorar do ponto de vista moral, processo que é contínuo e que tende a uma perfeição. Para a escola do Pórtico, é o sábio que tem boulesis, um desejo acompanhado de razão que move a busca da perfeição418. No entanto, para o Arpinata, tanto o sábio quanto o homem comum (stultus) possui voluntas. Para Lévy419, Cícero defende que todos têm algo de iniciativa e responsabilidade, mesmo sem gozar da vontade para a racionalidade perfeita de tipo estoico. Longe de confundir conceitos, Cícero reinterpreta conscientemente um aspecto da doutrina estoica, para reformular o grau excessivo de exigência que dirige ao homem. Ele percebe que, se reconhecesse no stultus apenas pulsão, não vontade, atribuir-lhe-ia uma racionalidade débil que lhe impossibilitaria fazer escolhas. Por isso, prefere unificar as terminologias, admitindo todo ser humano como capaz de decidir. Mesmo que cometa erros, todo homem pode avançar no estado de sua razão. Não precisa ser um sábio para caminhar em direção à sabedoria. A racionalidade é comum a todos os homens, mas são potencialidades somente atualizadas se forem feitas escolhas racionais420.As boas escolhas exigem consciência das circunstâncias e da variedade de situações que tornam os resultados incertos421. Cícero, na esteira de Carnéades, entende que, mesmo havendo necessidade e destino, algo 417 VALENTE. A ética estoica em Cícero, op. cit., p. 154.418 CÍCERO. Tusc. IV, 12.419 LÉVY, Carlos. Histoire de la philosophie: Cicéron. Chasseneuil-du-Poitou: CNED, s.d., p. 98-100. Cf. CÍCERO. Rep. I, 47. Assim também em Tusc. III, 4; 71.420 LÉVY. Histoire de la philosophie: Cicéron, op. cit., p. 107.421 CÍCERO. Fam. II, 7, 2.96 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSpermanece ao arbítrio422. O grande homem, como vir prudens, deve aproveitar a fortuna, seja ela favorável ou contrária, por meio do esforço423. Porém, para os antigos, não se pode pleitear um modo de viver completamente diferente, com descarte do passado e do presente. Como partimos de onde estamos, podemos apenas querer melhorar as nossas vidas424. Isso quer dizer não se conformar com as coisas tais como elas se colocam diante de nós, o que requer ter iniciativa, valer-se da razão para aproveitar as circunstâncias, as possibilidades, as oportunidades, tal como o barqueiro (gubernatorem) evita ser engolido pela tempestade e tira proveito dela425. Esse é um princípio de conduta pessoal e de ação política:En efecto, consideraría que no se ha de luchar con-tra fuerzas tan poderosas ni se ha de suprimir, aun cuando fuese posible, la primacía de los más emi-nentes ciudadanos, ni se han de mantener los mis-mos principios cuando han variado por completo las circunstancias y han cambiado los sentimien-tos de los hombres de bien; al contrario, hay que amoldarse a los tiempos: nunca en el gobierno de los grandes hombres de Estado ha sido motivo de elogio la obstinación permanente en una misma idea, sino que, al igual que en la navegación es un arte capear el temporal aun cuando no puedas to-mar puerto [...], del mismo modo en el gobierno de la República [...] no debemos mantener siempre el mismo lenguaje, pero sí el mismo objetivo.426Os vícios podem nascer por causas naturais, mas é possível extirpá-los, dependendo da vontade, do empenho e do aprendizado (voluntate, studio, disciplina)427. O animal é um “ser acabado”, nasce, vive e morre 422 CÍCERO. Fat. 31; 40; 38.423 CÍCERO. Off. II, 19-20.424 ANNAS, Julia. The sage in ancient philosophy. In: ALESSE, Francesca (ed.). Anthropine Sophia: studi di filologia e storiografia filosofica in memoria di Gabriele Giannantoni. Napoli: Bibliopolis, 2008, p. 12.425 CÍCERO. QFr. I, 1, 3-5.426 CÍCERO. Fam. I, 9, 21. Cf. Cartas III: Cartas a los familiares. Trad. José A. Beltrán. Madrid: Gredos, 2008, p. 208-209.427 CÍCERO. Fat. 11. | 97 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSsem modificações em sua estrutura interior. O homem, em contrapartida, diferencia-se por “fazer a si mesmo” durante sua existência: a virtude é conquistar a si próprio, ser honesto é estar em conformidade com a sua natureza, que é desenvolver aquilo que lhe é peculiar, ou seja, a razão428:Y ¿qué hay más divino que la razón, no ya en el hombre, sino en todo el cielo y la tierra? Esa razón que, al alcanzar su perfecto desarrollo, se llama, con justicia, sabiduría. Como nada hay mejor que la razón, y ésta es común a dios y al hombre, la co-munión superior entre dios y el hombre es la de la razón. Ahora bien: los participantes en una razón común lo son también en la recta razón; es así que la ley es una recta razón, luego, también debemos considerarnos los hombres como socios de la di-vinidad en cuanto a la ley; además, participantes en una ley común, lo son también en un derecho común; finalmente, los participantes en esta comu-nión, deben tenerse como pertenecientes a la mis-ma ciudad, y si siguen los mismos mandos y potes-tades, con más fundamento todavía. [...] Ahora bien; puesto que así engendró y dotó dios al hombre, al que quiso hacer principio de todas las demás cosas, se hace evidente, para no tener que razonarlo todo, que la naturaleza, por sí misma, es progresiva; y que, partiendo, sin maestro ninguno, de un conocimiento general de las cosas, que debe a una primera y esbozada inteligencia, llega, ella por sí misma, a fortalecer y perfeccionar la razón.429 O aprimoramento do homem é desenvolvimento da razão, pelo que alcança a perfeição que lhe é possível, que é estar em conformidade com a 428 TAVARES, Júlia Meyer Fernandes. A Filosofia da Justiça na obra de Marco Túlio Cícero. Dissertação (Mestrado em Filosofia do Direito). 64f. Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 89. Sobre a beleza moral e a distinção em relação à apresentação tradicional de quatro virtudes cardeais no De officiis, LÉVY. Histoire de la philosophie: Cicéron, op. cit., p. 104.429 CÍCERO. Leg. I, 22-27. Cf. Las Leyes. Trad. Álvaro D’Ors. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1953, p. 70-77.98 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSsua natureza. Isso é realizado na res publica, visto que o homem é um ser gregário. Portanto, a sua expressão maior é como cidadão.Civis, como termo primário de civitas, expressa também cidade: ser civis é para aquele de quem sou civis, como revela o uso frequente junto com o possessivo, civis meus, cives nostri. É um termo de valor recíproco, civis é civis de outro civis antes de ser de determinada cidade. Por isso, a melhor tradução é concidadão: somente se é cidadão na vida coletiva, reconhecendo-se aos olhos de um semelhante430. Nas origens de Roma, o cidadão era o agricultor, proprietário de terra que integra o exército431. Com o advento da República, esse modelo entrou em declínio em favor de elementos urbanos432 e militares, conectados à vida política. Na esteira de Nicolet, Corassin nota que “ser cidadão é muito mais do que ter um simples status jurídico, é uma espécie de oficio e até um modo de,vida”433. Cada cidadão deve, na medida das suas possibilidades e dos seus interesses, ajudar a coletividade434.Cícero argumenta que o melhor modo de vida é o do homem político, que se devota integralmente à cidade435. Esse ideário, presente em Platão e Aristóteles, fora abalado no período helenístico com a perda de autonomia das poleis, e refletiu-se em correntes filosóficas como o epicurismo, que excluía a ação política da sua concepção de vida boa. Cícero opõe-se aos epicuristas, então em propagação em Roma, para reafirmar a superioridade do dever cívico. Para tanto, mobiliza atores políticos históricos – como Cipião, no De re publica – e atuais, como o próprio cônsul Cícero autorretratado em combate com Catilina. Não é à toa que teria julgado a si próprio como modelo da vida do estadista, que é a melhor forma de vida: o homem político dedicado a implementar a melhor res publica coincide com ela própria436. 430 BERNARDO. O De re publica de Cícero, op. cit., p. 31; BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Trad. Eduardo Guimarães et al. Campinas: Pontes, 1989, p. 278-287.431 Vide CATÃO. De agri cultura.432 CORASSIN, Maria Luiza. O cidadão romano na República. Projeto História, São Paulo, n. 33, p. 271-287, dez. 2006, p. 272-273. Ver também ROULAND, Norbert. Roma, democracia impossível? Os agentes do poder na urbe romana. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 21 et seq.433 CORASSIN. O cidadão romano na República, op. cit., p. 276-277.434 NICOLET, Claude. O cidadão e o político. In: GIARDINA, Andrea (dir.). O homem romano. Trad. Maris Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1991, p. 26-27.435 CÍCERO. Rep. I, 12.436 ASMIS, Elizabeth. A new kind of model: Cicero’s Roman constitution in De | 99 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSAdiante averiguaremos como esse homem assume liderança no projeto ciceroniano. Desde logo, cabe ressaltar que esses principais437 expressam a união indivisível entre política e moral438. 2.2. O desenho da res publicaSe é na vida em comunidade que o homem pode desenvolver a sua natureza, reencontramos o problema central do pensamento antigo: qual a melhor constituição? Cícero desenha uma concepção de res publica que toma como referência os princípios morais elencados e a formação histórica de Roma, portanto, conjugando natureza e história.Como vimos, a melhor forma de governo decorre da combinação dos melhores elementos dos tipos políticos básicos. Enquanto atribuições e princípios políticos, eles travam uma relação de equilíbrio. Compreendamos os detalhes desse movimento.Republica. American Journal of Philology, v. 126, n. 3 (Whole Number 503), p. 377-416, fall 2005, p. 388-389 (inclusive nota 33). Cf. CÍCERO. Sest. 49 (“fore putabam ut exemplum rei publicae conservandae mecum simul interiret”); Red. quir. 14 (“aeque me atque illam restituendam”).437 Rizzo identifica nas Verrinas diversas expressões do bom homem político: primi homines; nobilissimi homines; virtute, nobilitate atque pecunia principes; principes civitatis; primi; viri primarii; primi homines genere virtute atque pecunia, primis nobilem, primus civitatis e nobilissimus e amplissimus civitatis e legationis princeps e princeps laudationis; disertus et prudens et domi nobilis; hom*o summo ingenio, summa prudentia, summa auctoritate praeditus; homines nobilissimi et principes civitatis. Cf. RIZZO, Francesco Paolo. “Princeps civitatis” nelle Verrine: Realtà civica e idealità ciceroniana. Ciceroniana, v. 4 (Atti del IV Colloquium Tullianum – Palermo – 28 settembre – 2 ottobre 1979), p. 211-221, 1980, p. 220. Cf. CÍCERO. Verr. II, 4, 37; 3, 55; 73; 108; 4, 92; 5, 165; 3, 56; 3, 74; 129; 4, 92-93; 5, 47; 3, 68; 73; 3, 200; 5, 120; 4, 50; 4, 51; 4, 15-17; 3, 80; 3, 170 4, 84; 92.438 PÖSCHL, Viktor. Quelques principes fundamentaux de la politique de Cicéron. Comptes rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, a. 131, n. 2, p. 340-350, 1987, p. 343. Exemplos em CÍCERO. Att. IX, 4; Fam. I, 9; Marcell. 23 (a restauração da república somente é possível pela restauração do mos maiorum).100 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS2.2.1. Formação e transformação das instituições político-jurídicas republicanas: auctoritas, potestas, imperiumDesde as origens, a família está na base da formação da sociedade. Cada família tem um chefe responsável pelo seu culto e dotado de poderes em face das mulheres, os filhos, os escravos e os agregados por relação de clientela. O pater familias é um patrono, líder de uma unidade de poder primária que é a família439. Arcaicamente, o fundador da família era o auctor, a quem eram atribuídas qualidades sintetizadas como auctoritas. A cada geração o progenitor assumia o encargo de continuar, aumentar, ampliar (augere) a fundação, de modo que a auctoritas patriarcal era uma transmissão legítima e ininterrupta. Nesse sentido, a tradição reconhecia Rômulo como o pater fundador de Roma, auctor do populus Romanus, possuidor de uma auctoritas divino-natural. Do ato fundante sagrado, os seus sucessores – primeiro os reis, depois os magistrados e senadores – deveriam acrescer a fundação original. Assim, a civitas era alicerçada na concepção de auctoritas, entre família, vida social e religião440. Como quer Hannah Arendt, “participar na política significava, antes de mais nada, preservar a fundação de Roma”441. A partir de Casinos Mora442, Domingo443 e Clemente Fernández444, podemos entender a auctoritas como derivando de augere, aumentar, robustecer, ampliar, dar plenitude a algo (daí augur e augustus) preexistente ou que ainda não existe. 439 Ver FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. Trad. Fernando de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 1998, passim.440 OAKESHOTT, Michael. Lectures in the History of Political Thought. Exeter; Charlottesville: Imprint Academic, 2006, p. 224 et seq.441 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 162: “Eis a razão por que os romanos foram incapazes de repetir a fundação de sua primeira polis na instalação de colônias, mas conseguiram ampliar a fundação original até que toda a Itália e, por fim, todo o mundo ocidental estivesse unido e administrado por Roma, como se o mundo inteiro não passasse de um quintal romano.”442 CASINOS MORA, Francisco Javier. La noción romana de auctoritas y la responsabilidad por auctoritas. Granada: Comares, 2000; Id. El dualismo autoridad-potestad como fundamento de la organización y del pensamiento político de Roma. Polis, n. 11, p. 85-109, 1999.443 DOMINGO, Rafael. El binomio “auctoritas-potestas” en el derecho romano y moderno. Persona y derecho, n. 37, p. 183-196, 1997, p. 183-184.444 CLEMENTE FERNÁNDEZ, Ana Isabel. La auctoritas romana. Madrid: Dykinson, 2014. | 101 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSNesse último caso, auctor é o criador de algo ex novo e, auctoritas, a qualidade de criar ou fazer. Daí a noção de fundação, fonte de legitimidade, para à qual deve acatar e ser fiel, como ordem moral e como instituição jurídica445.A forma elementar de auctoritas emanava dos anciãos, os patres familias mais velhos e respeitados, obtida “por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores”, uma força de raízes no passado, mas revelada na vida presente da civitas446. Segundo Arendt, a idade provecta distinguia-se não tanto pela sabedoria e experiência acumuladas, mas principalmente por ter vivido mais próximo dos antepassados447. Cremos, entretanto, que ambos os fatores são equiparados: se os romanos cresciam dirigindo-se ao passado, como afirma a autora, a moral ciceroniana sugere que os anciãos desenvolveram a razão, viveram segundo a natureza. A experiência é, simultaneamente,,convívio com os antepassados e exercício das virtudes, dos officia, resultando em modo de conquista da sabedoria. É por esse motivo que o homem de bem, espécie de quase-sábio mundano, torna-se referencial para os concidadãos, goza de autoridade.Por sua auctoritas, o senex exerce prerrogativas de direção e de deliberação como senador448, formando, assim, o Senatus449. A necessidade psicológica da comunidade de sentir identidade de grupo e de assegurar sua própria sobrevivência mediante a coesão exige a consolidação de uma instância central e superior dotada de poder coercitivo e reconhecida como capaz de se comunicar com a divindade e ser seu intérprete. Por isso o rex era acompanhado de uma instância de aconselhamento mediante opiniões qualificadas. Como vimos, Rômulo instituíra um conselho para legitimar e 445 Martino fala do entrelaçamento de qualidades morais, políticas e jurídicas na ordem constitucional romana. Cf. MARTINO, Francesco de. Storia della constituzione romana. 2. ed. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1974-1975, v. IV, 1, p. 282.446 ARENDT. Entre o passado e o futuro, op. cit., p. 163-164.447 Ibid., p. 166.448 SALGADO. A ideia de justiça no mundo contemporâneo, op. cit., p. 152.449 Cícero atribui Senatus a senex, vide Sen. 19: “Consilium, ratio, sententia nisi essent in senibus, non summum consilium maiores nostri appellassent senatum”. Também em Sen. 56. Para a visão da ancianidade no mundo helênico, ver ROUSSEL, Pierre. Étude sur le principe d’ancienneté dans le monde hellénique: du Ve siècle av. J.-C. à l’époque romaine. Mémoires de l’Institut National de France, v. 43, n. 2, p. 123-227, 1951.102 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSlimitar a força naturalmente expansiva do poder régio. Na República, assim agirá o Senado em relação à potestas populi e ao imperium consular450.Chegamos, finalmente, a um primeiro elemento da constituição mista de Cícero, o Senado com sua auctoritas, o que nos demandará o entrelaçamento de dimensões teóricas e históricas entre a obra do filósofo e outras fontes.Aquele que goza de auctoritas exerce uma relação de tutela quanto aos demais: o tutor guia, educa, aconselha451. Com efeito, o Senado é um conselho dos principais (principes)452, que não governa sozinho, mas orienta e chancela as decisões do povo453. Com o advento da República, intensifica-se a observância à “autoridade, decisão e tradição do Senado” (senatus auctoritate et instituto ac more)454. Em passagem do De re publica, Cícero apresenta os traços principais do Senado e da ordem senatorial. Relata que, embora em um contexto de pretensa diminuição da influência do Senado, suaautoridad seguía siendo importante y grande, y florecía sobre todo por la prudencia y energía de los que defendían a la ciudad con las armas y con su consejo, pues sobresalían entre todos los demás por su dignidad, pero eran a la vez más austeros, sin ser tampoco más ricos, de manera que se apre-ciaba más en la vida pública su virtud personal por el hecho de que se preocupaban diligentemente de los asuntos privados de cada uno de los ciudadanos, con ayuda de su consejo y acción.455De acordo com Oakeshott456, o laço de tutela entre auctor e populus é exercido por meio de condução e ensinamento. Similarmente, a relação 450 CASINOS MORA. El dualismo autoridad-potestad como fundamento de la organización y del pensamiento políticos de Roma, op. cit., p. 90-92; 99.451 PAULO. Digesta XXVI, 8, 3: “Etiamsi non interrogatus tutor auctor fiat, valet auctoritas eius, quum se probare dicit id, quod agitur; hoc est enum auctorem fieri.”; CÍCERO. Verr. II, 1, 153.452 CICERO. Rep. II, 453 CICERO. Rep. II, 14; 17; 23; 25.454 CICERO. Rep. II, 56.455 CICERO. Rep. II, 59. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 116-117.456 OAKESHOTT. Lectures in the History of Political Thought, (versão digital), op. cit. | 103 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdo Senado com a res publica não é de comando, mas de aconselhamento refletido. A auctoritas legitima-se na traditio, na união da geração presente com as raízes da fundação original. Como guardião dos costumes, o seu titular examina as novidades e as transformações em sua congruência com eles, condição para entrever na fortuna os rumos de Roma. Assim, arremata Oakeshott, a auctoritas, como manancial de iniciativa política dirigida a partir do mos maiorum, é procedimento de autorização via tradição.O Senado, como guia, conselheiro e diretor do povo, é também seu educador, preservando e fortalecendo os laços com o mos maiorum457. Com isso, auctoritas não é “comando”, isto é, ordem obrigatória e irresistível. No caso da auctoritas senatorial, as posições não são necessariamente vinculativas458. Contudo, cremos que o inverso também é válido: governar pressupõe certa dose de auctoritas. É o que Hellegouarc’h indica ao afirmar que auctoritas expressa a capacidade, em sentido mais geral, de influência na vida política, pois auctor é, ademais, quem garante459, a garantia ou aqueles que substituem os atos de seus dependentes, como no exercício da auctoritas patris460 e da auctoritas patroni461. Por uma visão abrangente, não há quem não exerça algum grau de auctoritas ou se submeta à de outro ao consultar a opinião para tomar decisões462, no âmbito privado ou público463. Por uma visão restrita, a auctoritas nasceu atrelada à preeminência material e religiosa dos patrícios464, mas saiu dos patres para a ordo senatorius e à nobilitas, associando-se auctoritas e virtus, o aspecto familiar e hereditário com o aspecto pessoal465. Quando decorrente da esfera de qualidades particulares, pode aumentar ou diminuir em razão das res gestae, do sucesso militar, dos 457 ATKINS. Cicero on politics and the limits of reason, op. cit., p. 108. Ver DIO CÁSSIO. Historia romana LV, 3, 5 (a tradução do termo auctoritas para o grego é impossível).458 OAKESHOTT. Lectures in the History of Political Thought, (versão digital), op. cit.459 CÍCERO. Flac. 84; Cael. 68; Caecin. 27; Verr. II, 1, 144. 460 CÍCERO. Verr. II, 2, 97; Cael. 37; Planc. 47.461 CÍCERO. Sen. 37. 462 Assim também os jurisconsultos, que gozavam da auctoritas prudentium e eram indagados sobre o direito vigente, em manifestação de verdadeira autoridade pessoal associada à prudentia. Exemplo em CÍCERO. Sen. 61.463 CÍCERO. De or. III, 133; WIRSZUBSKI, Chaïm. Libertas as political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1968, p. 34-35.464 CÍCERO. Dom. 1; Div. I, 89; Rep. I, 15-16.465 CÍCERO. Cat. I, 32; Phil. V, 41; Red. quir. 7; De inv. I, 5.104 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOShonores e da idade466. Como destaca Hellegouarc’h, a ação própria de alguém que tem a auctoritas é persuadir e convencer467, propiciado pela capacidade em um dado domínio468. Por isso, exprime-se por conselhos: o Senado dá o consilium, por manifestação de uma sententia469. Nesse caso, a auctoritas é a influência de um senador que fala, motivo pelo qual a eloquentia é crucial na vida jurídica e política, como veremos adiante: a auctoritas própria de um orator tem peso ou eficácia equiparável à habilidade com a qual entrega o discurso470. Em suma, a auctoritas senatus compreende, enquanto noção global, a auctoritas pessoal de membro do Senado, individual ou no seu conjunto471, bem como o próprio papel exercido pela instituição na constituição romana. Como auctoritas patrum que dá força de lei às decisões populares, é tutela do povo e garante da conformidade das decisões ao mos maiorum472, mesmo quando manifestada previamente ao voto comicial473. Como aconselhamento dos magistrados sobre a decisão a tomar, é um consilium publicum que, tão prestigiado e respeitado, embora sem força jurídica de imposição, é força real e eficaz474, reconhecida pelo povo romano, o que, para Cícero, significa um princípio de,governo do Senado475.466 HELLEGOUARC’H, Joseph. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République. Paris: Les Belles Lettres, 1963, p. 295, para todo o parágrafo. Sobre o sucesso militar, ver CÍCERO. Flac. 14; Mur. 58. Sobre os honores, ver Brut. 327; Leg. Man. 2. Sobre a idade, ver Sen. 62.467 Daqui em diante, neste parágrafo, HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 300-306. Em Att. VIII, 9, 1, por exemplo, Cícero exorta a salvar a pátria (“ad salutem patriae hortabar”). 468 CÍCERO. Top. 78.469 CÍCERO. Fam. V, 6, 3; Pis. 35. Em Balb. 61, Cícero afirma ter sido “princeps et auctor” de sententiae.470 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 300-306. Cf. CÍCERO. Mur. 24; De or. I, 20; 31; III, 63; 136; Brut. 84; 239; Sull. 80; Planc. 62.471 MOMMSEN, Theodor. Le droit public romain. Trad. Paul Frédéric Girard. Paris: Ernest Thorin, 1891, t. VII, p. 42 et seq.472 WILLEMS, Pierre Gaspard Hubert. Le sénat de la république romaine: sa composition et ses attributions. Louvain: Ch. Peeters; Berlin: Calvary et Cie., 1883, t. II, p. 36.473 MARTINO, Francesco de. Storia della costituzione romana. 2. ed. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1973, v. II, p. 149-153; CASINOS MORA. El dualismo autoridad-potestad como fundamento de la organización y del pensamiento políticos de Roma, op. cit., p. 103. Cf. TITO LÍVIO. Ab urbe condita I, 17, 9; VIII, 12, 15; CÍCERO. Brut. 55.474 MOMMSEN. Le droit public romain, 1891, v. VII, op. cit., p. 231-233.475 Para todo o parágrafo, HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des | 105 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSCom efeito, nosso autor entende que a obediência ao Senado é imprescindível, especialmente quando em jogo a segurança da res publica476, porquanto melhor defendida pelo consilium senatorial477. Isso quer dizer que o Senado garante a liberdade, logo, não pode ficar à mercê de interesses particulares, ser escravo do povo (senatum servire populo)478. Antes, por decidir sobre as províncias e administrar as conquistas militares, é como uma assembleia pública mundial (in publico orbis terrae consilio, id est in senatu)479, uma vez que, sendo Roma a nova senhora global, o Senado governa o mundo inteiro (orbi terrarum praesidebat)480. Essas atribuições indicam que, enquanto consilium, a auctoritas do Senado expressa a capacidade de aportar um conselho eficaz ou tomar uma decisão sábia, em sentido próximo, porém diverso, de prudentia, faculdade mais ampla, fruto do estudo e da experiência481. Qualquer um que falasse no Senado dava consilium, mas apenas alguns determinavam a decisão vencedora482, como Cícero lembra que, por força de seu consilium (meis consiliis), libertou e preservou a res publica da ameaça de Catilina483. Por tudo partis politique sous la République, op. cit., p. 311-312. Sobre a relação de tutela do Senado, CÍCERO. Rep. II, 56; Planc. 62. Sobre a auctoritas senatus e suas atuações expressando autoridade, Leg. III, 10; Sest. 73; De or. III, 5; Cat. III, 7; Verr. II, 3, 181; Leg. agr. II, 41; Dom. 136; Balb. 39; Rosc. Am. 153; Phil. III, 34; Fam. I, 2, 4; VIII, 8, 6; XV, 2, 4.476 CÍCERO. De or. I, 164.477 CÍCERO. Verr. II, 1, 4. 478 CÍCERO. De or. I, 226.479 CÍCERO. Fam. III, 8, 4. Também em Phil. IV, 14 e em III, 34 (Cf. Filípicas, op. cit., p. 85): “padres conscriptos, aprovechad la ocasión y acordaos alguna vez de que sois los jefes del consejo más augusto del mundo [amplissimi orbis terrae consilii principes vos esse aliquando recordamini!]. Mostrad al Pueblo romano que no faltará a la república vuestra sabiduría [consilium] [...].”480 CÍCERO. Phil. II, 15.481 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 258. Cf. Clu. 13 (nondum consilio ac rationem firmatum); Leg. agr. II, 91; Sen. 19 (sed consilio, ratione, sententia); Phil. III, 12; 14; V, 3; VII, 19; Mil. 90 (consili publici); Sull. 14 (qui consul insidias rei publicae consilio investigasset); Fam. I, 7, 4 (senatus consilium); Sest. 36 (nullius consili fuisse confiteor); 137. Ver também De inv. I, 36; II, 31; Leg. agr. 102; Mil. 2; 47; Dom. 107; Rosc. Am. 153; Marcell. 9; Rep. II, 15; Pis. 7; Planc. 9; 15.482 BALSDON, J. P. V. D. Auctoritas, Dignitas, Otium. The Classical Quarterly, new series, v. 10, n. 1, p. 43-50, 1960, p. 43. Nesse sentido, Cícero agradece a assistência recebida durante seu consulado por Lúculo, com seu consilium et auctoritas (Acad. post. II, 3), e por Públio Servílio e Marco Lúculo (Dom. 132). Balsdon pondera que a auctoritas do senador mais velho não dependia do seu sucesso para carregar consigo o Senado, cf. Fam. 6, 1, 6. 483 CÍCERO. Cat. III, 14; Dom. 93; Red. quir. 16; Mil. 36.106 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSisso, o Senado é ele próprio a agregação daqueles que detêm o consilium, é o conselho mais sagrado e nobre da terra (consilio sanctissimo que gravissimo orbis terrae)484. Portanto, a auctoritas senatorial pressupõe a liberdade de expressar opiniões, de discutir aguerridamente sobre as questões na ordem do dia, sem medo ou pressão485. Como resultado dos debates, o Senado pode emitir um senatus consultum, resolução efetiva, com efeitos jurídicos; ou um senatus auctoritas, resolução manifestante da vontade e intenção da maioria dos senadores presentes e votantes, registrada nos anais, mas sem efeitos jurídicos486, apenas influência, porque auctoritas.Contudo, a autoridade do Senado declinava no século I a.C., permitindo que a força bruta assumisse seu lugar. Cícero acreditou que, com a morte de César, a res publica voltaria ao consilium auctoritatemque dos senadores487. Não foi o que ocorreu. Marco Antônio, por exemplo, não reconhece a autoridade dos senadores e do Senado, desafia-a, desrespeita-a, o que lhe impede de ser considerado como verdadeiro cidadão488. Somente pode gozar dessa qualidade aquele que, como Bruto, tem todos os desejos, pensamentos e alma dirigidos a afirmar a proeminência do Senado “y la libertad del pueblo romano”489. Mas se outrora somente a autoridade senatorial faria cair as armas de todos os bandidos dessa espécie490, se a essência da res publica residia no livre debate senatorial, na ditadura não há mais lugar para consilium e auctoritas491. Agora Cícero sente a dor de ver que “la república, conservada por vuestros consejos y los míos, dentro de breve tiempo pereciera”492. Ele deseja evitar 484 CÍCERO. Cat. I, 9.485 BRUNT, P. A. The fall of the Roman Republic and related essays. Oxford: Clarendon Press, 1988, p. 327; Leg. agr. I, 21-23. Exemplos de liberdade de expressão e política: Leg. agr. II, 29; Dom. 10; Sull. 25; Phil. I, 27; VIII, 12; Fam. I, 8, 3; II, 5, 2; IV, 14, 1; 5, 3; X, 31, 3; XI, 7, 2. 486 BALSDON. Auctoritas, Dignitas, Otium, op. cit., p. 43. Em GAIO. Institutiones I, 1, 4: “senatusconsultum est quod senatus iubet atque constituit; idque legis vicem optinet, quamvis fuerit quaesitum”. Exemplos de veto são Fam. I, 7, 4; VIII, 8, 6-8.487 CÍCERO. Phil. I, 1.488 CÍCERO. Phil. VI, 16. 489 CÍCERO. Phil. X, 23. Cf. Filípicas, op. cit., p. 160.490 CÍCERO. Phil. XIV, 21.491 BALSDON. Auctoritas, Dignitas, Otium, op. cit., p. 44. Sobre o cerceamento da liberdade e outras consequências da ditadura de César, ver CÍCERO. Off. II, 2; Brut. 7; Fam. IV, 13, 2; VI, 10, 2.492 CÍCERO. Phil. III, 15, 37. Cf. Filípicas, op. cit., p. 42. | 107 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSessa catástrofe e, para tanto, entende como necessário restaurar a auctoritas do Senado.O primeiro passo é cessar a falsa ruptura entre Senatus e populus. Antes, o povo livre (in populo libero) agia segundo a autoridade do Senado, isto é, obedecia pacientemente (cum summa esset auctoritas in senatu populo patiente atque,parente)493. Cumpre reatar o laço no qual o Senado exerce “o poder juntamente com o povo, como órgão da República como atesta a divisa originária Senatus Populusque Romanus (SPQR)”494. Populus é um conceito jurídico, segundo Salgado. De fato, é possível identificar uma definição precisa nos textos clássicos. Conforme Gaio:Lei é o que o povo [populus] manda e constitui. Ple-biscito é o que a plebe [plebs] manda e constitui. Ora, a plebe difere do povo em que a denominação de povo abrange todos os cidadãos, incluídos tam-bém os patrícios; ao passo que a denominação de plebe significa os demais cidadãos, com exclusão dos patrícios; por isso outrora os patrícios não se consideravam ligados pelos plebiscitos, por terem estes sido feitos sem a autoridade deles, mas depois foi promulgada a lei Hortência, que dispôs fossem os plebiscitos aplicados a todo o povo [universum populum]; e assim foram equiparados às leis.495As Institutas de Justiniano também são claras ao registrar que “a plebe difere do povo como a espécie do gênero; pois, a denominação de povo [populi] designa a universalidade dos cidadãos [universi cives], incluindo patrícios e senadores [patriciis et senatoribus]; ao passo que a da plebe [plebis] significa os demais cidadãos, com exclusão dos patrícios e senadores”496. Por consequência, plebs não é a massa informe, gozando de significado jurídico 493 CÍCERO. Rep. II, 32, 56; 36, 61.494 SALGADO. A ideia de justiça no mundo contemporâneo, op. cit., p. 153-154.495 GAIO. Institutiones I, 1, 3. Cf. CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. Volume II: Institutas de Gaio e Justiniano vertidas para o português. São Paulo: Saraiva, 1951, p. 18-19 (adaptado).496 JUSTINIANO. Institutiones I, 2, 4. Cf. CORREIA; SCIASCIA. Manual de Direito Romano, v. II, op. cit., p. 304-305.108 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSpreciso497. Populus, a seu turno, expressa o povo reunido em comício: agere cum populo indica o magistrado que reúne o povo para dirigir-se a ele ou para interrogá-lo sobre a sua vontade, e um magistrado pode fazer aprovar um projeto político per populum ou per senatum, segundo a submissão da decisão ao povo ou ao Senado498. Para Ferrary, o paralelismo dessas fórmulas tentava estabelecer uma relação de oposição originalmente inexistente quando a velha distinção entre populus e plebes atenuava-se pela equiparação entre plebiscitos e lei. Assim, populus indicaria a res publica, a coletividade na sua completude, o povo reunido em comício para aprovação de leis, eleição de magistrados e certos julgamentos499.Os comitia eram um sistema que visava modular a expressão das opiniões e a decisão, conferindo-lhes ordem500. Dentre as diversas assembleias, o comício das centúrias era apontado por Cícero e os optimates como estando o “verdadeiro povo”, pois “dividido”, “ordenado”, hierarquizado, e os votos, distinguidos qualitativamente, não apenas contados. Ali são definidos alguns dos assuntos mais importantes da res publica: eleições dos cônsules, dos pretores e dos censores; penas capitais ou leis que põem em causa o estatuto ou a vida de um cidadão; votações de leis relativas à guerra, paz, diplomacia501. 497 SORDI, Marta. Populus e plebs nella lotta patrizio-plebea. In: URSO, Gianpaolo (a cura di). Popolo e potere nel mondo antico: Atti del convegno internazionale, Cividale del Friuli, 23-25 settembre 2004. Pisa: ETS, 2005, p. 63-69. A definição do jurisconsulto Capitão é reproduzida em AULO GÉLIO. Noctes atticae X, 20, 5-6.498 CÍCERO. Phil. I, 6.499 FERRARY, Jean-Louis. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana. In: FIRPO, Luigi (dir.). Storia delle idee politiche, economiche e sociali. Volume primo: L’antichità clássica. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1982, p. 748-749.500 AULO GÉLIO. Noctes Atticae XV, 27; CÍCERO. Flac.15. Cf. Discursos III. Trad. Jesús Aspa Cereza. Madrid: Gredos, 1991, p. 300: “¡Qué admirables serían la costumbre y la norma recibidas de nuestros antepasados sí fuéramos capaces de seguirlas! Pero, yo no sé cómo, se nos escapan ya de las manos. Porque eses antepasados nuestros, tan sabios y tan respetables, no permitieron que la asamblea del pueblo tuviera ninguna autoridad. Quisieron que, una vez disuelta la reunión, en sitios separados, dividido el pueblo por tribus y por centurias según su orden, su clase y su edad, oídos los autores de la proposición, después de muchos días de haber sido promulgada y examinada la propuesta, el pueblo, mediante sus plebiscitos y sus decisiones, pudiera aprobarla o desaprobarla.”501 Para todo o parágrafo, NICOLET. O cidadão e o político, op. cit., p. 19-48, p. 33-38. Sobre a divisão entre iuniores e seniores, TITO LÍVIO. Ab urbe condita I, 43, 1; XXII, 57, 9; AULO GÉLIO. Noctes Atticae X, 28; DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Antiguidades romanas IV, 6. Sobre a votação centurial, TITO LÍVIO. Ab urbe condita I, 43, 11. Sobre a reforma dos comícios por centúrias, TITO LÍVIO. Ab urbe condita XXIV, 7, 12. | 109 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSEssas atribuições mostram que o povo romano tem uma vontade. Ele quer, exige e, para manifestar essa vontade, emana ordens (voluntas, iussus populi), por meio dos comícios, mecanismo indireto e complexo de expressão do cidadão como eleitor, pois o populus jamais age sozinho e não há representação502. Como conjunto de cidadãos, encontra-se em situação de minoridade, demandando um tutor. Não age, quer ou ordena espontaneamente, precisando ser provocado. Os comitia são os meios pelos quais o povo participa de um ato, quando convocado503. Outras assembleias existem, como contiones, reuniões prévias de discussão das propostas, sem poder de decisão; e concilia, reuniões da plebe que tomam decisões referentes apenas a ela504. Contudo, mesmo os comícios são grupos intermediários entre o particular e a decisão, porque o cidadão, entidade perfeita no plano jurídico, não o é no plano político505. O populus tem a força da potestas, o poder de legislar, quer dizer, eleger magistrados e criar o direito, como preleciona a Lei das XII Tábuas: “o que o povo estabelece em última instância é direito” (ut quodcumque postremum populus iussisset, id ius ratumque esset)506. Segundo Domingo, potestas decorre de potis, termo indo-europeu que significa poder e originou o grego despotes, senhor da casa507. D’Ors508 a define a potestade como poder aceito pelo grupo 502 NICOLET. O cidadão e o político, op. cit., p. 32; Id. Le métier du citoyen dans la république romaine. 2. ed. Paris: Gallimard, 1976, p. 290.503 MOMMSEN, Theodor. Le droit public romain. Trad. Paul Frédéric Girard. Paris: Thorin et Fils, 1892, t. I, 219-222. São eles as cúrias, já sem importância política no fim da República; as tribos, originadas de reagrupamentos territoriais, embora se tornem em parte hereditárias; e as centúrias, determinadas pela idade e pela classe censitária, principalmente pelo critério de riqueza. Cf. TITO LÍVIO. Ab urbe condita IX, 38, 15.504 Os concilia perdem espaço para os comícios das tribos. Ver TITO LÍVIO. Ab urbe condita III, 55, 3; VIII, 12, 15; AULO GÉLIO. Noctes Atticae XV, 27. Cf. PEIXOTO, José Carlos de Matos. Curso de Direito Romano. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 55.505 NICOLET. Le métier du citoyen dans la république romaine, op. cit., p. 290-292, para todo o parágrafo.506 TITO LÍVIO. Ab urbe condita VII, 17, 12 (tradução nossa, mas também traduzido como “as últimas leis do povo revogam as precedentes”, que não deixa de ter sentido próximo. Cf. MEIRA, Sílvio. História e fontes do Direito Romano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Saraiva, 1966, p. 106); WIRSZUBSKI. Libertas as political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate, op. cit., p. 83.507 DOMINGO. El binomio “auctoritas-potestas” en el derecho romano y moderno, op. cit., p. 184.508 D’ORS, Alvaro. Ensayos de teoria,politica. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1979, p. 111-113; 116-117. Ver também, do mesmo autor, Derecho y sentido común: siete lecciones de derecho natural como límite del derecho positivo. 3. ed. Madrid: Civitas, 2001, p. 91-102.110 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSsocial, decorrente do saber pessoal socialmente reconhecido, a auctoritas. Para a liberdade, é necessário que a potestas se apoie em uma auctoritas, mas sem se confundir com ela, pois consiste em eleger bem e realizar os conselhos da autoridade, enquanto a prudência desta última é saber aconselhar a potestade, indicando-lhe o que é possível e mais conveniente ao interesse comum. Decisões pontuais da potestas prevalecem sobre o consilium, mas a potestas desautorizada pela auctoritas perde seu caráter. Para Oakeshott509, potestas é, então, poder juridicamente legítimo de decisão, diverso do mero poder físico (potentia). Além de mediado pelos comícios, fora deles o povo não exerce diretamente a potestas, encarregando cidadãos com funções públicas dotadas de prerrogativas e limitações juridicamente definidas. Portanto, há diferença consciente entre magistratus e a potestas que o define. O poder de fazer leis implica o poder de fazê-las cumprir. Por isso, o povo concede o exercício do comando sobre o cidadão livre a algumas magistraturas, para as quais elege os homens mais abalizados. Esse poder, chamado imperium, é conferido aos magistrados curuis, quais sejam, o cônsul, o pretor e o edil, além dos procônsules e propretores das províncias (nas quais significava governo romano, exercido pelos magistrados e pelas legiões)510, e o dictator (e, mais tarde, ao Princeps)511. Originado da arregimentação e liderança do exército pelo Rex, mas, na República, torna-se poder magistratural, diferenciado entre imperium domi, praticado na civitas e abarcando a propositura de leis nos comícios e a convocação do Senado; e imperium militae, praticado fora de Roma, de cunho principalmente militar; sem contar as repercussões no exercício da iurisdictio, a permitir medidas equitativas512. Os magistrados com imperium são acompanhados por lictores, 509 OAKESHOTT. Lectures in the History of Political Thought, op. cit.510 EHRENBERG, Victor. Man, State and Deity: Essays in Ancient History. 2. ed. Abingdon: Routledge, 2011, p. 119-120.511 O imperium era simbolizado pelo porte de um bastão de marfim com a figura de uma águia pelo magistrado curul, escoltado por lictores carregando fasces. Dentro dos limites de Roma, não podiam portar as machadinhas dos fasces, indicando a suspensão do imperium. Cf. PEIXOTO. Curso de Direito Romano, op. cit., p. 31.512 MARTINO, Francesco de. Storia della costituzione romana. 2. ed. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1973, v. III, p. 327; MARTINO, Francesco de. Storia della costituzione romana. 2. ed. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1973, v. II, p. 398-399; CÍCERO. Rep. I, 60. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 75-76: “[...] no habrá poder supremo que gobierne, pues, ciertamente, no puede haber poder si no es único” (imperium, quod quidem nisi unum sit esse nullum potest). | 111 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSagentes que, arcaicamente, garantiam o cumprimento imediato das ordens (coercitio), indicando que o magistrado pode se valer de força física (verbera), prisão (prensio), confisco da propriedade (pignoris captio) e multas (multae)513. Por ser tão concentrado, o uso incorreto do imperium pode fazer do seu detentor um déspota (regnum)514. A magistratura com imperium é o ápice da carreira política romana, as maiores dignitates que um cidadão pode obter. O acesso a elas foi racionalizado, primeiro de modo costumeiro, posteriormente por lei específica, segundo uma hierarquia sequencial (cursus honorum) que objetivava assegurar ganho gradual de experiência até as magistraturas curuis, cujo cume era o consulado, além de selecionar os melhores líderes políticos a partir de suas ações pretéritas e da chancela popular515. O crescimento da cidade levou à criação de novas magistraturas com certo grau de especialidade, servindo simultaneamente como forma de limitação do poder516. Mas não a única. É válido lembrar também a anualidade, a colegialidade e a intercessio517. O surgimento dos tribunos da plebe contribuiu para reequilibrar as relações entre patrícios e plebeus e modificou as relações entre as instituições, ao também se valer da intercessio e de outros mecanismos de obstrução, tornando-se uma das figuras mais poderosas de Roma518. No entanto, nascido para ser instrumento revolucionário, foi sendo transformado em meio de integração social e solidariedade governamental, em cooperação com o Senado519. 513 CÍCERO. Leg. III, 6; POMPÔNIO. Digesta I, 2.514 OAKESHOTT. Lectures in the History of Political Thought, (versão digital), op. cit.515 ROCHA, André Menezes. Jusnaturalismo estoico e republicanismo no De Legibus de Cícero. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 227-247, 2011, p. 236.516 LOEWENSTEIN, Karl. The governance of Rome. The Hague: Martinus Nijhoff, 1973, p. 58; PEIXOTO. Curso de Direito Romano, op. cit., p. 29 et seq; MOMMSEN, Theodor. Le droit public romain. Trad. Paul Frédéric Girard. Louvain: Thorin et Fils, 1893, t. III, p. 84 et seq; BONFANTE, Pietro. Historia del Derecho Romano. Trad. Jose Santa Cruz Teijeiro. Madrid: Editoral Revista de Derecho Privado, 1944, v. I, p. 113 et seq.517 TITO LÍVIO. Ab urbe condita III, 13, 6; VI, 35, 8-9; AULO GÉLIO. Noctes Atticae XIII, 12.518 LOEWENSTEIN. The governance of Rome, op. cit., p. 48-50. PEIXOTO. Curso de Direito Romano, op. cit., p. 39-43; MOMMSEN. Le droit public romain, t. III, op. cit., p. 313 et seq; BONFANTE. Historia del Derecho Romano, v. I, op. cit., p. 114-118. TITO LÍVIO. Ab urbe condita II, 23; 27; 28; 32; 33, 1; III, 55, 6-10; DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Antiguidades romanas VI, 89.519 LOEWENSTEIN. The governance of Rome, op. cit., p. 69-72; PEIXOTO. Curso de Direito Romano, op. cit., p. 31. As instituições tradicionais foram absorvendo o tribunato, 112 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSA exceção à dinâmica constitucional ordinária sob a forma de ditadura merece atenção por ser instrumento jurídica e politicamente legítimo, específico para situações de emergência. Embora a tradição tenha creditado-a como remanescência do poder monárquico, tratava-se de instituição genuinamente republicana, pois moldada por normas preocupadas em controlar o exercício de um poder tão concentrado, sem colegialidade, possibilidade de provocatio ou intercessio. Por isso a efemeridade e algumas restrições de atuação520. Sob certo ponto de vista, a ditatura foi considerada mais legítima do que o senatus consultum ultimum, apesar de ter caído em desuso após as Guerras Púnicas521, entre outros motivos, em favor da referida medida, que permitira disfarçar ambições pessoais e abusos522.Seguindo parcialmente Loewenstein523, podemos concluir que o imperium é “símbolo jurídico de liderança política”, direito de comandar e força para fazer cumprir, no qual encontramos resquícios dos poderes primitivos do pater familias de ius vitae necisque, no caso, sobre os cidadãos em situações emergenciais e crimes capitais (com a ressalva da provocatio ad populum). Portanto, faculta certa discricionariedade para viabilizar medidas necessárias para atender o interesse público e proteger a res publica. Se nem todos os magistrados têm imperium, todos possuem potestas, enquanto prerrogativas e deveres de natureza administrativa ou judicial típica de cada tipo de magistratura, e encontram meios de produzir mais impacto efeitual524. Como a potestas é do populus Romanus, o maior ato do povo era a concessão assegurando apoio às medidas senatoriais, entre outros, pela gradual integração de plebeus e patrícios na nobilitas, projeto abalado com,os Gracos. Ver, em POLÍBIO. História VI, 16, 4, uma forma comum de obstrução.520 LOEWENSTEIN. The governance of Rome, op. cit., p. 76-80; PEIXOTO. Curso de Direito Romano, op. cit., p. 37-39; MOMMSEN. Le droit public romain, t. III, op. cit., p. 161 et seq; TITO LÍVIO. Ab urbe condita II, 18, 8; IV, 31, 4; VII, 12, 9-10; 19, 9; VIII, 12, 2; DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Antiguidades romanas V, 75.521 SCHMITT, Carl. Dictatorship. Trad. Michael Hoelzl e Graham Ward. Cambridge; Malden: Polity Press, 2014, p. 2; MOMMSEN. Le droit public romain, t. III, op. cit., p. 193-194.522 LOEWENSTEIN. The governance of Rome, op. cit., p. 81. Cf. JÚLIO CÉSAR. De bello civili I, 5, 3. Sobre o senatus consultum ultimum aprovado para Cícero em 63 a.C., DIO CÁSSIO. Historia romana XXXVII, 31, 2-3.523 LOEWENSTEIN. The governance of Rome, op. cit., p. 44-48.524 Sobre o imperium no fim da República, ver NICOLET, Claude. Autour de l’imperium. Cahiers du Centre Gustave Glotz, n. 3, p. 163-166, 1992; RODDAZ, Jean-Michel. Imperium: nature e compétences à la fin de la République et au début de l’Empire. Cahiers du Centre Gustave Glotz, n. 3, p. 189-211, 1992. | 113 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdo imperium a um cidadão via eleição. Ainda que seguida ou precedida da tutela do Senado, permanecia como imperium populi Romani: o povo romano governa a si mesmo e o mundo por meio de agentes eleitos por ele, assim legitimados em poder e autoridade como magistratus populi.A auctoritas magistratural é a respeitabilidade decorrente da condição de cidadão venerável, de lastro político familiar, e sua eleição, que confirma sua dignidade. Como podemos ver, a auctoritas é diferente, mas não estranha à potestas, pois os honores fornecem um acréscimo de auctoritas, como o exercício da censura e do consulado confere summa auctoritas. Enquanto a potestas desaparece com a função, a auctoritas permanece e mesmo cresce com o número e a importância das magistraturas exercidas, complementando aquela525. Ao populus também é reconhecida certa auctoritas, mas geralmente a título de captatio benevolentiae ou para afirmar a superioridade romana em face de outros povos e o papel de proteção e tutela que exerce526. Esse último tipo de ascendência e autoridade é melhor denominada maiestas, grandeza, tendo por raiz “maior”, indicando aquele que possui certo caráter sacrossanto, posição que deve ser respeitada e defendida527. A expressão maiestas populi Romani era empregada tanto pelos populares, para opor à auctoritas senatus528, quanto pelos romanos conscientes de sua superioridade529. Considerando esses sentidos, os magistrados são agentes da maiestas populi Romani530, ou 525 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 309-310; CÍCERO. Rep. II, 57; Pis. 8; Planc. 49; Mur. 74.526 CÍCERO. Leg. Man. 64; Verr. II, 4, 60.527 CÍCERO. De or. II, 164. Cf. SCATOLIN, Adriano. A invenção no Do orador de Cícero: um estudo à luz de Ad Familiares I, 9, 23. 308f. Tese (Doutorado em Letras Clássicas). - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 224 (adaptado): “se majestade é a grandeza e a dignidade da res publica [...]”; Phil. III, 13; Rab. Perd. 20; Part. or. 105. Cf. PINHEIRO, Nídia Emanuel Magalhães. Cícero, As divisões da arte oratória: estudo e tradução. 118f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes – Literaturas Clássicas). - Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, 2010, p. 91-92: “‘[...] a majestade consiste na grandeza do povo romano e em manter a sua força e os seus direitos’ [...] ‘a majestade está no reconhecimento do poder e prestígio do povo romano [...]’.”528 CÍCERO. Phil. III, 13. 529 CÍCERO. Sest. 83; Leg. agr. II, 79; Red. quir. 4; Balb. 35-36; Phil. I, 21.530 Em todo o parágrafo, HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 313-314. Ver De inv. II, 52-53; Vat. 22; Phil. XIII, 20.114 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmelhor, o populus tinha a maiestas, concretizada na potestas dos magistrados531, que também gozavam de auctoritas na produção de atos normativos532.O próprio contexto de nascimento das concepções de potestas e de auctoritas confundem-se com a gênese da noção de res publica533. Desde a fundação de Roma a manutenção da auctoritas do Senado depende da salvaguarda da liberdade do povo e dos interesses dos optimi534. O equilíbrio entre potestas e auctoritas é o que verdadeiramente sintetiza a ideia de libertas populi, cujas raízes remontam ainda à tensão entre patrícios e plebeus que, em tese, foi harmonizada no seio da potestas, pela neutralização recíproca entre o imperium dos magistrados e a intercessio tribunícia535. Cícero interpreta o governo romano como uma mistura sutil de exercício de auctoritas e potestas, incluído aí o imperium, mas complementares. Partindo da história de Roma, nosso autor vislumbra a importância de uma integração concertada entre os diferentes elementos componentes da res publica para que uma constituição seja estável. Isso é o que fez dela a melhor constituição. Para tanto, o equilíbrio assumia a forma de uma igualdade geométrica entre todas as forças políticas. Cada elemento possui características próprias que demandam prerrogativas e limitações que respeitem as suas peculiaridades. Com isso, em Cícero, temos o reconhecimento de uma espécie de predomínio nominal do povo considerado como fonte de toda potestade, mas modulado de maneira que toda a comunidade aceite a autoridade do Senado. Em outras palavras, o Senado é a cabeça da cidade: os magistrados derivam seu imperium da potestas do povo, que os elegem, mas obedecem à auctoritas do Senado e se conformam aos seu consilium536.531 DOMINGO. El binomio “auctoritas-potestas” en el derecho romano y moderno, op. cit., p. 186.532 CÍCERO. Rep. I, 52 (leges inponit populo); Leg. III, 1, 2 (magistratum legem esse loquentem); Verr. II, 1, 109.533 CASINOS MORA. El dualismo autoridad-potestad como fundamento de la organización y del pensamiento políticos de Roma, op. cit., p. 88-89.534 IACOBONNI, Anna. Le sens de la libertas au sein du mos maiorum chez Ciceron. Camenulae, Paris, n. 11, out. 2014.535 CASINOS MORA. El dualismo autoridad-potestad como fundamento de la organización y del pensamiento políticos de Roma, op. cit., p. 96-97.536 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 746-747. | 115 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS2.2.2. O equilíbrio constitucional: aequabilitasA constituição romana é uma “mistura equilibrada ou justa”. Para Cícero, isso não quer dizer paridade de poderes, “mas um monopólio das funções cruciais de decisão nos elementos monárquico e aristocrático, ajudado e apoiado pelo componente popular”537. Expliquemos. Em Políbio, a estabilidade, fator distintivo da constituição mista, é garantida por uma força igual em cada um dos três componentes governativos. Em Cícero, de modo sutilmente diferente, trata-se de certa igualdade entre as partes, não exclusivamente aritmética. Com efeito, o termo empregado é aequabilitas, que pode significar tanto igualdade numérica – assegura igual liberdade e direitos civis – quanto igualdade geométrica – segundo o mérito, de acordo com qualidades dos cidadãos e seus contributos à res publica. A primeira forma é iniquíssima, enquanto a segunda é aquela que garante a justiça538. Contudo, ambas devem estar presentes em certa medida, para evitar conflitos sociais, tal como já observara Platão539, e, assim, levar a efeito o compromisso político-jurídico que enseja o êxito da constituição540.A história do declínio de diversas cidades e o sucesso de Roma revelam que não é qualquer mistura que permite a estabilidade e a perenidade. Por exemplo, se o elemento monárquico sobressai,,como os magistrados com seu imperium, tem-se um reino, não uma república, e, como todas as monarquias, é instável e degenera-se pela concentração de poder541. Os romanos vivenciaram isso por um tempo.Así, pues, en esa época, el senado mantuvo la repú-blica de manera que; siendo libre el pueblo, unas pocas cosas las hiciera el pueblo y la mayoría se ri-gieran por la autoridad, la decisión y la tradición del senado, y que unos cónsules tuvieran, sólo por un año, una potestad que por sí misma y de derecho 537 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 165-166.538 CÍCERO. Rep. I, 43; 53.539 PLATÃO. As leis 756e-758a.540 ASMIS. A new kind of model: Cicero’s Roman constitution in De Republica, op. cit., p. 402-403.541 CÍCERO. Rep. II, 42-43.116 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSera como la de los reyes, y se observaba decidida-mente, lo que era muy importante para asegurar el poder de los nobles, que los acuerdos de los comi-cios populares no valieran si no los aprobaba la au-toridad de los padres del Senado. [...].542Com a instauração da República, não ocorreu distribuição de poderes de modo idêntico entre os diferentes elementos sociais. A liberdade foi garantida ao povo, a quem foram atribuídas algumas poucas funções (ut in populo libero pauca per populum). Foi ao Senado que coube a maioria das funções, legitimado por sua auctoritate et instituto ac more gererentur e responsável por chancelar as decisões dos comícios (patrum auctoritas), resguardando o poder dos nobres (potentiam nobilium). Naquela ocasião também foram instituídos os cônsules, um poder (potestatem) do mesmo gênero dos reis (genere ipso ac iure regiam), mas com limitação temporal (tempore dumtaxat annuam).[...] que la república no puede conservar su estabi-lidad [conservari statum] a no ser que se dé en ella un equilibrio de derecho, deber y poder [nisi aequa-bilis haec in civitate conpensatio sit et iuris et officii et muneris], de suerte que los magistrados tengan la suficiente potestad [potestatis satis in magistratibus], el consejo de los hombres principales tenga la sufi-ciente autoridad [auctoritatis in principium consilio], y el pueblo tenga la suficiente libertad [libertatis in populo sit].543Eis determinada a fórmula da constituição mista. Nela, cada elemento exerce uma função e tem uma qualidade respectiva, tais como discutimos anteriormente. Os poderes não são e não podem ser numericamente equânimes. Há um concerto complexo, liderado pelo Senado, apesar de, historicamente, terem existido forças contrárias à grandeza de seu papel544. Cícero está ciente da existência de outras formas de composição 542 CÍCERO. Rep. II, 56. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 115.543 CÍCERO. Rep. II, 57. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 116.544 CÍCERO. Rep. II, 59. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 117. | 117 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSconstitucional, inclusive daqueles que adotam a igualdade aritmética. Mas esta é rechaçada, porque injusta por prescindir de distinções de dignidade:Ciertamente, la igualdad del derecho, a la que as-piran los pueblos sin moderación, tampoco se pue-de mantener, porque los mismos pueblos, aunque carezcan de vínculos y de todo freno, no pueden menos de atribuir cargos de gobierno a ciertas per-sonas, y no deja de haber en ellos una distinción de personas y dignidades; y la que se llama igual-dad es muy injusta, porque cuando es una misma la dignidad de los superiores y la de los inferiores que componen el pueblo, necesariamente esa igualdad resulta muy injusta; lo que no puede suceder en las ciudades que se gobiernan por los más nobles.545Dignitas é valor, mérito, reputação. No De inventione, Cícero define-a como “la autoridad de una persona, basada en el honor, el homenaje y el respeto” (dignitas est alicuius honesta et cultu et honore et verecundia digna auctoritas)546, o que encontra eco na noção de justiça: “A justiça é um hábito do espírito que conserva a utilidade comum e dá a cada um a sua dignidade” (Iustitia est habitus animi communi utilitate conservata suam cuique tribuens dignitatem)547. A própria ideia de justiça em Cícero, portanto, pressupõe dignitas, ao lado de auctoritas, no sentido de igualdade proporcional, segundo o mérito, determinado como valor reconhecido conforme o contributo para a utilidade comum. De fato, a dignidade da res publica depende da dignidade de seus cidadãos mais ilustres548, que são aqueles iguais em liberdade e primeiros em virtude (libertate esse parem ceteris, principem dignitate)549. A constituição que realiza a justiça está comprometida com a utilitas, o que 545 CÍCERO. Rep. I, 53. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 71.546 CÍCERO. De inv. II, 166. Cf. La invención retórica. Trad. Salvador Núñez. Madrid: Gredos, 1997, p. 304-305.547 CÍCERO. De inv. II, 160.548 CÍCERO. Red. quir. 25. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 87: “[...] una ciudad como esta, que, con un voto unánime, ha decidido que no podía conservar su propia dignidad si antes no me recuperaba a mí.”549 CÍCERO. Phil. I, 34.118 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSsignifica reconhecer a igualdade em meio à diferença, e a diferença em meio à igualdade, no seio da vida coletiva. Qualquer governo que busque tornar obscura ou erradicar as distinções sociais, de modo a reduzir todos a um denominador comum, viola o princípio da justiça natural e a verdadeira igualdade. Aqueles que merecem mais, segundo os padrões de cidadão e homem de bem, devem gozar de mais poder político e direitos do que o mínimo garantido a todos. A melhor constituição reconhece algumas liberdades indistintamente, porém, mais para aqueles de superior dignitas, que são poucos. A única forma de realizar esse marco de justiça é instituir e manter uma escala de direitos políticos variáveis correspondentes à hierarquia de ordens sociais.Cícero também conecta a dignitas com auctoritas, palavras com sentido estático uma, a outra dinâmico. Auctoritas é a expressão da dignitas de um homem. Na política, a dignitas é o bom nome de um homem, a bona aestimatio de que falava Caio Graco550. É a sua reputação551. Assim, ela dota uma pessoa com auctoritas. Uma res publica que falha em reconhecer as diferenças em dignitas e construir sua estrutura política a partir delas, mina a vitalidade e a coesão da ordem cívica, que está fundada no reconhecimento e no respeito à autoridade. É o caso da constituição democrática, que não consegue garantir uma efetiva liberdade, pois ausente de justiça, direito e ordem, que dependem dessas noções552.Rechaçar a democracia não implica reduzir a dignidade à aristocracia, ao contrário do que possa parecer. Por um lado, Balsdon alerta não ser correto generalizar, em Cícero, a expressão dignitate optimi cuiusque, em vez de dignitate senatus ou rei publicae, pois a dignitas é dos seus membros (dignitatem rei publicae sustinent)553, principalmente dos mais velhos554. Assim, designa “uma dignidade que é o reconhecimento de um mérito”555, mas de assento familiar, herança transmitida e que cada geração tem o dever, se não 550 AULO GÉLIO. Noctes atticae XI, 10, 3.551 BALSDON. Auctoritas, Dignitas, Otium, op. cit., p. 45. Ver CÍCERO. Att. 7, 11; JÚLIO CÉSAR. De bello civili. I, 4, 4; 7, 7; 8, 3; 9, 2; De bello gallico VIII, 53.552 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 150.553 CÍCERO. Dom. 3.554 BALSDON. Auctoritas, Dignitas, Otium, op. cit., p. 49.555 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 739. | 119 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSde acrescer, ao menos conservar. E essa conservação exige um esforço do descendente atual de se sobressair tanto quanto os seus antepassados556. Os nobres mais conscientes dos deveres de seu grupo reconheciam, não tanto a necessidade de que a nobreza fosse aberta, mas,ao menos que a dignidade hereditária de seus antepassados fosse confirmada com a conduta pessoal557. No caso do hom*o novus, quando cônsul, tornava-se o fundador de uma família nobre558 e distanciava-se dos nobiles na afirmação de um mérito pessoal fundado na virtus e na industria559. Com isso, é indispensável reconhecer que a dignitas aristocrática não era uma entidade estável e constante. Estava sujeita a ser desafiada e reavaliada nos embates cotidianos. O senso de nobreza perpetrado pelos oriundos das mais proeminentes famílias e o correspondente ressentimento em relação a novos aspirantes contribuía para criar um ambiente político volátil560. Ainda assim, a dignidade era com frequência associada à riqueza, desde a repartição do povo em classes e centúrias por Sérvio Túlio561. De fato, a vinculação dos mais ricos com maior encargo tributário e obrigação militar, reverteu-se em mais capacidade política, permeando todo o processo de formação da estrutura política romana562. A partir de então, crê-se que as vantagens devem ser superiores aos encargos, as funções alternadas e as tarefas repartidas: não são todos aptos para todas as atividades públicas, assim como nem todos os encargos devem recair exclusivamente em alguns563. A pretensão de manter a união social demanda considerar as diferenças sem descurar de um lastro igualitário. Em vista disso, estaria a proporcionalidade conectada com a riqueza em Cícero? Para Fantham, a riqueza reverbera nos critérios de definição da direção da res publica, como no já mencionado comentário à reforma dos comitia centuriata, em favor da 556 CÍCERO. Sest. 21; Marcell. 10; Mur. 15.557 Exemplo em CÍCERO. Fam. V, 1, 1.558 CÍCERO. Cat. IV, 23; Clu. 111; SALÚSTIO. Bellum Iugurthinum 85.559 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 741-742.560 HALL, Jon. Politeness and politics in Cicero’s letters. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 12-13. CÍCERO. Amic. 34; Fam. VIII, 14, 1.561 CÍCERO. Rep. II, 39-40. Sobre a reforma de Sérvio Túlio, ver TITO LÍVIO. Ab urbe condita I, 42-43; DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Antiguidades romanas IV, 15-21.562 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 738-739.563 NICOLET. O cidadão e o político, op. cit., p. 27-28.120 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSredução do poder dos plurimi. Assim, afastar-se-ia de Aristóteles, que rejeita a estima em termos de riqueza, mas nem tanto do Platão de As Leis, que reflete na composição do conselho a divisão de classes segundo a propriedade564. Wood, por sua vez, critica Cícero por sua incongruência ao não associar, em teoria, a superioridade com o bom nascimento e a riqueza, enquanto o faria na prática: as famílias antigas e ricas são vinculadas à honestas, enquanto, inversamente, o pobre e sem lastro familiar é improbus, sordidus, marcado por ignominia, ou seja, o filósofo conectaria pobreza e miséria com inferioridade moral565.Sem negar a presença desses elementos, acreditamos, porém, tratar-se menos de uma particularidade de Cícero do que a reprodução de uma noção comum da elite romana. Nicolet566 observa que Roma, como todas as cidades antigas, era desigual de fato e de direito. Ao reconhecer a igualdade jurídica de todos os cidadãos, constatava imediatamente a desigualdade dos particulares e dos grupos em matéria física, social, de riquezas. Porém, para prosperar, a cidade precisa garantir a coesão entre seus membros, o que demanda, malgrado as diferenças fáticas, justificar a repartição das funções públicas e as vantagens sob um critério de justiça, no caso, arquitetada a partir do princípio de igualdade proporcional. Para tanto, o census é fundamental, pois identifica e divide os cidadãos em grupos segundo idade (juniores e seniores) e riqueza (equites, pedites e proletarii), ou seja, a igualdade proporcional romana quer dizer uma cidade censitária onde são determinados os direitos e os deveres de cada um567. Devemos, claro, atentar-nos para o alerta de Nicolet de que não existe “o” cidadão romano, mas “os” cidadãos romanos, que são proprietários, agricultores, habitantes de Roma ou de outras regiões itálicas etc. Essas variações revelam a impossibilidade da igualdade absoluta 564 FANTHAM, Elaine. Aequabilitas in Cicero’s political theory, and the Greek tradition of proportional justice. The Classical Quarterly, New Series, v. 23, n. 2, p. 285-290, nov. 1973, p. 287-290; ARISTÓTELES. Política III, 5, 1280a 12; V, 1, 1301a-1302a; PLATÃO. As leis 743a-745d; 756a-757a.565 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 96. CÍCERO. Tusc. V, 29; Fin. III, 51; Cat. II, 18; Verr. II, 46; Verr. V, 14; 154; Leg. agr. I, 22; Dom. 58; 89; Mur. 36.566 NICOLET, Claude. Les classes dirigeantes romaines sous la République: ordre sénatorial et ordre équestre. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, a. 32, n. 4, p. 726-755, 1977.567 NICOLET. Le métier du citoyen dans la république romaine, op. cit., p. 426. | 121 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSentre todos, de modo a serem inevitáveis algumas diferenças de direitos e deveres568, honores e onera569. Apesar de superior a igualdade de mérito, a igualdade numérica não resta excluída. Ela tem seu lugar, como em Platão570. Por isso o populus reunido em comício compõe um dos pilares constitucionais. E também por isso a liberdade do povo, quando encontra o direito, resulta em aequa libertas, que implica repúdio à discriminação jurídica entre cidadãos do tipo das antigas vedações à plebe e os privilegia. Portanto, igualdade perante a lei, igualdade de todos os direitos pessoais e igualdade do fundamento dos direitos políticos571. Em outros termos, a justiça é aequitas, em dupla dimensão: uma subjetiva, direito válido para todos, independentemente da posição social, como na Lei das XII Tábuas; outra objetiva, aplicação do mesmo direito para casos idênticos, uniformidade de soluções, isto é, segurança jurídica572. Ocorre que a justiça, como equidade, é também tribuir a cada coisa em direito segundo a dignidade (aequitas ius uni cuique re tribuens pro dignitate cuiusque)573, o que é afirmar não ser possível igualdade justa sem distinções de dignidade (tamen ipsa aequabilitas est iniqua, cum habet nullos gradus dignitatis)574. Embora aequabilis e aequitas sejam termos correntes no tempo de Cícero, tende-se a afirmar a invenção pelo orador de aequabilitas, significando um refinamento conceitual. O primeiro uso por Cícero ocorre em Pro Murena, logo após empregar aequitas575, mas é em carta a Quinto 568 Ibid., p. 18-19.569 CORASSIN. O cidadão romano na República, op. cit., p. 278.570 ATKINS. Cicero on politics and the limits of reason, op. cit., p. 112.571 WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate, op. cit., p. 14-15.572 KUPISZEWSKI, Henryk. La nozione di stato nel De republica di Cicerone. Ciceroniana, v. 7 (Atti del VII Colloquium Tullianum - Varsavia, 11-14 maggio 1989), p. 193-199, 1990, p. 199. Cf. CÍCERO. Off. II, 41; Top. 23; 90.573 Rhetorica ad Herennium III, 3. 574 CÍCERO. Rep. I, 43. Ver exemplos em CÍCERO. Mur. 47; Rep. I, 49; 53, além de WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the late Republic and early Principate, op. cit., p. 14 et seq.575 CÍCERO. Mur. 41. Cf. Discursos V. Trad. Jesús Aspa Cereza. Madrid: Gredos, 1995, p. 433-434 (adaptado): “[...] la jurisdicción civil. En ella la importancia de la función proporciona gloria, la generosa distribución de equidad conquista simpatía [gratia aequitatis largitio]. En ella un pretor prudente – como lo fue éste – evita la aversión con la equibilidad de sus decisiones [aequabilitate decernendi], gana benevolencia con su afabilidad a la hora de escuchar.”122 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSque seu sentido é revelado: sed conservetur aequabilis é imparcial, invariável,,consistente, igualmente distribuído576. No De oratore I, 188, a aequabilitas é estabelecida como o objetivo do ius civile e, em II, 209, indica igualdade formal perante a lei577. No De re publica o conceito ganha substância e papel central: ora é aplicado à democracia, como igualdade de poder político ativo, vide a isonomia e a isegoria gregas, sendo questionado; ora à res publica, como modo de garantia da liberdade578. O que fica claro é que igualdade política para todos, desconsiderando as diferenças de cada um, é mera aequitas579, distante do mais elevado conceito de justiça, que é aequabilitas580. Esta última é a grande vantagem da res publica mista581, pois cimenta a estrutura político-jurídica na justa distribuição entre liberdade, autoridade e poder. Em suma, o equilíbrio constitucional desejado por Cícero dá-se como aequabilitas, projeção das virtudes da aequitas e da moderação no plano político-jurídico, erguendo-o segundo o gradus dignitatis e impedindo a extensão dos poderes do povo – a transformá-lo em multidão desordenada – e a autoclausura dos nobiles em seus privilégios – a transformá-los em factio –, degenerações que levariam à derrocada da res publica582. Em Aristóteles, a constituição mista também é vislumbrada sob a ótica da justiça proporcional. Em Cícero, entretanto, outros são os elementos, pois próprios ao mundo romano, em especial, as divisões da sociedade conforme a dignitas, em uma hierarquia de ordens de repercussão jurídica. A constituição mista ao modo ciceroniano permite melhor acomodar e implementar essa justiça proporcional, o que se faz na forma de diferentes sistemas de direitos, deveres e funções, com a garantia de participação política ampla, mas com peso decisivo daqueles de status superior. Para Wood, Cícero acredita na igualdade moral dos homens, mas defende que alguns são superiores e, por isso, devem governar583. Essa superioridade decorre do 576 CÍCERO. Qfr. I, 1, 20.577 CÍCERO. De or. I, 188; II, 209.578 CÍCERO. Rep. I, 43; 69.579 CÍCERO. Rep. I, 53.580 Para todo o parágrafo, FANTHAM. Aequabilitas in Cicero’s political theory, and the Greek tradition of proportional justice, op. cit., p. 285-287.581 LINTOTT. The constitution of Roman Republic, op. cit., p. 194-195.582 FIORAVANTI. Constitución, op. cit., p. 28-29.583 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 92. | 123 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSconceito de persona do De officiis584: há uma persona universal compartilhada por todos, pela qual somos iguais criaturas racionais; em contrapartida, cada um possui uma persona particular e única que, devido a fatores físicos, de nascimento e a circunstâncias da vida, difere das outras. Todos possuem a mesma potencialidade racional enquanto seres humanos, mas cada um a atualizará distintamente. Poucos desenvolvem sua natureza, controlando as tendências voluptuosas pela razão. O nascimento, como primeiro fator, é questão de sorte, mas o que se faz com ele depende das escolhas. Os homens superiores devem governar os inferiores para guiá-los585. É por isso que Cícero declara que nem todos são aptos a serem patrícios (non possunt omnes esse patricii), com o que a maioria nem se importa ou se considera inferior586. Reencontramos aqui o pressuposto moral da política.Assim, temos que a melhor constituição ciceroniana é mista: uma res publica “moderada e balanceada”, “bem regulada”, de “equilíbrio justo” ou “mistura equânime”587. Esse esquema é o único capaz de gerar efetiva estabilidade porque é justo, cada um recebe aquilo que lhe é devido, segundo a sua natureza, enfim, recebe adequadamente o seu direito (ius suum):En efecto, conviene que haya en la república algo superior y regio [praestans et regale], algo impartido y atribuido a la autoridad de los primeros ciudada-nos [auctoritati principum impartitum ac tributum], y otras cosas reservadas al arbitrio y voluntad de la muchedumbre [iudicio voluntatique multitudi-nis]. Esta constitución tiene, en primer lugar, cierta igualdad [aequabilitatem] la que no pueden care-cer los hombres libres por mucho tiempo; luego estabilidad [firmitudinem], puesto que una forma pura fácilmente degenera en el defecto opuesto, de modo que del rey salga un déspota, de los no-bles, una facción, del pueblo, una turba y la revolu-ción, puesto que aquellas formas generalmente se mudan en otras nuevas, lo que no sucede en esta 584 CÍCERO. Off. I, 107-125.585 CÍCERO. Leg. I, 29-33.586 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 84-85; 92-95; CÍCERO. Sull. 23.587 Vide CÍCERO. Rep. II, 41; 57; 65; 69.124 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSotra constitución mixta y moderada de república, si no es por graves defectos de los gobernantes, pues no hay motivo para el cambio cuando cada uno se halla seguro en su puesto, y no hay lugar para caí-das precipitadas.588Cícero, através de Cipião, conclui que deve-se considerar “como melhor uma quarta espécie de governo, moderado e misto, que se origina daquelas outras três que antes mencionei” (itaque quartum quoddam genus rei publicae maxime probandum esse sentido, quod est ex his quae prima dixi moderatum et permixtum tribus)589. A combinação dos elementos não é segundo o número, mas conforme o peso (non enim numero haec indicantur, sed pondere)590: as diferentes instituições, expressando ordens sociais distintas, gozam de atribuições e pesos específicos, selando um quadro político-jurídico justo. Como descreve Wood, a constituição ciceroniana pode ser interpretada como a balança da justiça proporcional, na qual a minoria definida pela riqueza e nascimento é igual à maioria numérica dos pobres591. Atingidas essas conclusões sobre o caráter geral da ideia de res publica em Cícero como constituição mista, segundo a tríplice disposição de elementos governativos e sociais, precisamos detalhar seus conteúdos estruturantes, salientando, outrossim, eventuais fatores do passado e do presente de Roma subjacentes esses contornos político-jurídicos. 2.2.3. Contornos do projeto político-jurídico: optimates, princeps, libertas A história de Roma expressa a busca contínua pelo equilíbrio, tal como vimos pleiteado por Cícero. No entanto, a instabilidade era rotineira, efeito das transformações da sociedade, ademais insuflada por novos influxos culturais e disputas pelo poder. As instituições político-jurídicas, porquanto 588 CÍCERO. Rep. I, 69. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 83 (adaptado). Ver igualdade proporcional também em Rep. I, 43; 53; II, 39-40; 56-57; Leg. III, 24-25; 28; 38-39.589 CÍCERO. Rep. I, 45.590 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 166. CÍCERO. Off. II, 79.591 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 167-168. Cf. CÍCERO. Rep. II, 37-40. A mistura e o equilíbrio são ainda evidenciados em Rep. I, 68; II, 69; III, 41. | 125 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmanifestam os papeis dos diferentes grupos sociais, são inevitavelmente afetadas. Por exemplo, se o populus é universi cives592 compreendendo todo o corpo cívico593, a antiga distinção entre plebs e populus não desaparece, reafirmando antagonismos com outras roupagens, a despeito do reclamo por unidade. Novas instituições surgem, então, com o objetivo de promover o fim das discórdias594, mas, por vezes, fomentam as cisões595: cada lado desejava a sua própria constituição596, lutas em favor de um direito assumiam forma de afirmar a sua maiestas. Porém, persistem tentativas de unir as “duas cidades”597. No fundo, é esse processo conflituoso a marca da originalidade da constituição romana598.A convergência entre plebe e patriciado, que forjara a coletividade do populus, também originou uma nova elite, a nobilitas e, no seio desta, linhagens de descendência consular e pretoriana599. Novas prerrogativas e distinções foram sendo fixadas consuetudinariamente600,,subvertendo a efetividade da abertura do acesso da plebe às magistraturas. Nada havia de “soberania” popular, como queria Mommsen601. Um hom*o novus como Cícero era exceção602, apesar da margem tênue de flexibilidade, admitidos apenas 592 Ver MOGGI, Mauro. Demos in Erodoto e in Tucidide. In: URSO (a cura di). Popolo e potere nel mondo antico, op. cit., p. 11-24; TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso VI, 39; HERÓTODO. História III, 80, 6. 593 TITO LÍVIO. Ab urbe condita II, 56, 12.594 Entre outros, TITO LÍVIO. Ab urbe condita III, 65, 7; 67, 6; 69, 4; IV, 60, 3.595 TITO LÍVIO. Ab urbe condita III, 19, 4 e 9. Ver também usos em II, 27, 5 e 8; III, 63, 8.596 SORDI. Populus e plebs nella lotta patrizio-plebea, op. cit., p. 66.597 Sobre o culto da Concordia, OVÍDIO. Fasti I, 639 et seq. Sobre as duas cidades, TITO LÍVIO. Ab urbe condita II, 44, 9 (“Duas civitates ex una factas, suos cuique parti magistratus, suas leges esse.”). Também em III, 19, 9.598 SORDI. Populus e plebs nella lotta patrizio-plebea, op. cit., p. 66; SALÚSTIO. Bellum Iugurthinum 31.599 Sobre transformação da diferença entre patrícios e plebeus, as cisões no âmago da plebe e a formação da nobilitas, ver Cf. MARTINO. Storia della costituzione romana, v. II, op. cit., p. 138-148; MOMMSEN, Theodor. Le droit public romain. Trad. Paul Frédéric Girard. Paris: Ernest Thorin, 1889, t. VI, v. 2, p. 51-52; GELZER, Matthias. The Roman Nobility. Trad. Robin Seager. Oxford: Basil Blackwell, 1969, p. 27-40; TITO LÍVIO. Ab urbe condita VI, 35-42. Ver os exemplos de CÍCERO. Att. IV, 8a, 2; Mur. 53; Pis. 1-2.600 O costume era fonte primária do direito, cf. ULPIANO. Digesta I, 3, 33; HERMOGENIANO. Digesta I, 3, 35.601 MOMMSEN, Theodor. Le droit public romain. Trad. Paul Frédéric Girard. Paris: Ernest Thorin, 1889, t. VI, v. 1, p. 342.602 NICOLET. Les classes dirigeantes romaines sous la République, op. cit., p. 731. Ver também COWELL, F. R. Cicero and the Roman Republic. 2. ed. Harmondsworth; Baltimore: Penguin Books, 1962, p. 199-200; WISEMAN, T. P. New men in the Roman 126 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSpor qualidades excepcionais603. Logo a nobilitas passou a adotar uma postura conservadora, preocupada em não comprometer a solidez da própria posição, enquanto os demais plebeus perderam fulgor revolucionário, arrefecidos por laços de patronagem604. O orgulho alastrou-se, assim como a agressividade e o desprezo em face daqueles que ousavam disputar o seu locus605.Esses preceitos regem um grupo no interior da nobilitas que lidera a administração de Roma, a ordem senatorial, componente do Senado, que constitui o cerne do sistema jurídico-político. Por ser composta por ex-magistrados, a instituição indiretamente acabava por ter investidura popular – de modo que, por vezes, dizia ser beneficio populi606 –, assumida no zelo pela res publica, desde os maiores607. Isso não descartava conflitos internos e entre ordens, pois não era como queria Floro: aos mais velhos o governo da cidade, aos mais jovens a guerra608. Os embates aumentavam diante do crescimento das demandas administrativas com a expansão territorial609, a exemplo dos équites e seu desejo por galgar posições correspondentes ao seu ascendente Senate: 139 B.C.-A.D. 14. Oxford: Oxford University Press, 1971.603 GRUEN, Erich S. The exercise of power in the Roman Republic. In: MOLHO, Anthony; RAAFLAUB, Kurt; EMLEN, Julia (ed.). City States in Classical Antiquity and Medieval Italy. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1991, p. 251. Vide o exemplo de Mário, que enfrentou a monopólio fático da nobilitas, cf. SALÚSTIO. Bellum Iugurthinum 63. Nesse sentido, WISEMAN. New men in the Roman Senate, op. cit., passim; HOPKINS, Keith; BURTON, Graham. Political succession in the late Republic (250-50 BC). In: HOPKINS, Keith. Death and renewal: sociological studies in Roman history. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, v. 2, p. 31-119; HELLEGOUARC’H, Joseph-Marie. La conception de la “noblesse” dans la Rome républicaine. Revue du Nord, t. 36, n. 142, p. 129-140, avr./juin 1954. Remetemos o leitor ao detalhado estudo de BRUNT, P. A. Nobilitas and novitas. The Journal of Roman Studies, v. 72, p. 1-17, 1982.604 MARTINO. Storia della costituzione romana, v. II, op. cit., p. 143-145; TITO LÍVIO. Ab urbe condita X, 37, 11; GRUEN. The exercise of power in the Roman Republic, op. cit., p. 251-267, p. 252. Ressalvas sobre o impacto efetivo das relações de clientela e patronagem na política romana são feitas por FINLEY. Politics in the Ancient World, op. cit., p. 41; BRUNT. The fall of the Roman Republic and related essays, op. cit., p. 351 et seq.605 Como CÍCERO. Fam. III, 7, 4-5; VI, 1. 606 MARTINO. Storia della costituzione romana, v. II, op. cit., p. 185; Cf. CÍCERO. Sest. 137; Clu. 150.607 IACOBONNI, Anna. Le sens de la libertas au sein du mos maiorum chez Ciceron, op. cit.; CÍCERO. Phil. VIII, 30. Cf. Filípicas, op. cit., p. 141-142: “La mayor gloria para un consular, no sólo entre nuestros antepasados, sino en estos últimos tiempos, ha sido vigilar por la república, teniendo siempre presente en el ánimo que hay que dedicarle cuanto se piensa, se hace o se dice.”608 BONNEFOND, Marianne. Le Sénat républicain et les conflits de générations. Mélanges de l’École française de Rome. Antiquité, Roma, t. 94, n. 1, p. 175-225, 1982, p. 176-178. Cf. FLORO. Epitome de Tito Livio bellorum omnium annorum DCC I, 1, 15.609 MARTINO. Storia della costituzione romana, v. II, op. cit., p. 190. | 127 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSpoderio econômico610. Cícero percebia muito bem a necessidade de harmonia no núcleo da liderança política de Roma, embora até então todas as tentativas tenham se mostrado instáveis. Pior, o mais preocupante conflito que ameaça a constituição, ultrapassa as fronteiras tradicionais das ordines e toma corpo moral, na forma do embate entre optimates e populares.No Pro Sestio, Cícero aponta que Roma sempre conviveu com cidadãos que cultivavam os mores e outros que os rejeitavam. Aqueles que os preservam são os verdadeiros cidadãos, dedicados ao interesse comum, os homens bons, os melhores, os optimates, que contrastam com outra espécie, os populares:Hubo siempre en esta ciudad dos clases de hombres entre quienes aspiraron a ocuparse de la política y a actuar en ella de manera distinguida; de éstos, unos pretendieron ser y que se les considerara “po-pulares”, los otros “optimates”. Los que pretendían que sus acciones y palabras fueran gratas a la mul-titud, eran considerados populares; optimates, en cambio, los que se conducían de tal forma que sus decisiones recibían la aprobación de los mejores.611O termo populares remonta à tradição dos Gracos e é distinto do demagogo grego. Trata-se dos cidadãos que agem sobretudo per populum, e não per senatu, alegando a defesa de interesses do povo contra os poucos privilegiados, a potestas do povo contra a auctoritas do Senado. Inversamente, os optimates a eles se contrapunham declarando-se defensores do interesse geral, e não apenas do povo612. Ora, estes últimos não eram meros aristocratas 610 Ibid., p. 301-302. A ordem equestre era um grupo censitário que fornecia seus serviços como cavaleiros, com alto custo e prestígio. Apesar de certa distinção por hereditariedade, era possível o ingresso de homens nascidos na plebe. Com as reformas de Caio Graco, que lhes deram o controle das cortes judiciais para enfraquecer a influência do Senado, tornou-se uma força política dificilmente ignorável, ainda mais por seu status econômico, como proprietários de terras ou publicani. A aliança entre senadores e equites, quando possível, gerava um poderio ao qual poucos podiam resistir. Cf. NICOLET. Les classes dirigeantes romaines sous la République, op. cit., p. 729 ; 737-738; Id. Le métier du citoyen dans la république romaine, op. cit., p. 12-15; SYME, Ronald. The Roman Revolution.,Oxford: Clarendon Press, 1939, p. 13-14. Cf. CÍCERO. Clu.153-154. Ver também ROULAND. Roma, democracia impossível?, op. cit., p. 131 et seq.611 CÍCERO. Sest. 96. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 349-350.612 RODDAZ, Jean-Michel. Popularis, populisme, popularité. In: URSO (a cura di). 128 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSem busca da aprovação da gente de bem e os populares definitivamente não eram “democratas”, pois, apesar de se considerarem defensores dos direitos do povo, suas propostas não atacavam o coração do sistema613. Ademais, os optimates conseguiam com mais facilidade certa unidade para defesa da ordem estabelecida frente às ações dos populares, cuja agregação era mais precária e volátil. Por isso, não cremos ser possível falar em ideologias614 ou partidos específicos615, porque inexistente programa comum e provisórias as associações.Quando o método dos populares passa a fomentar a ruptura constitucional, por meio de aprovação popular de leis contrárias à vontade do Senado, incitando revoltas e fazendo ascender lideranças por sobreposição à Popolo e potere nel mondo antico, op. cit., p. 97-122, p. 98. A distinção também está presente em SALÚSTIO. Bellum Catilinae 38.613 FERRARY. Optimates et populares, op. cit., p. 229-230. Sobre a formação dos populares, ver NICOLET, Claude. Les Gracques ou Crise agraire et Révolution à Rome. Paris: Julliard, 1967, p. 109-112.614 Na esteira de Christian Meier, poderíamos falar em ideologias se constatássemos não apenas o confronto entre slogans isolados, mas entre duas visões que constituíssem sistemas de valores distintos, por exemplo, um o redor da auctoritas senatus, outro dos iura e da potestas populi. Cf. FERRARY, Jean-Louis. Optimates et populares. Le problème du rôle de l’idéologie dans la politique. In: Die späte römanische Republik: La fin de la Républica romaine. Un débat franco-allemand d’histoire et d’historiographie. Rome: École Française de Rome, 1997, p. 228. A obra citada é MEIER, Christian. Res publica amissa. Wiesbaden: Franz Steiner, 1966.615 Historiadores modernos como Mommsen descreveram a divisão entre optimates e populares como uma espécie de partido de governo versus um partido de oposição, ilusão influenciada pelo modelo de governo liberal do século XIX. Por isso também são anacrônicas as descrições que empregam “conservadores” e “populistas”, “direita” e “esquerda”. Com efeito, não é possível identificar ou classificar posicionamentos políticos segundo grupos demarcados. Não havia agenda ou unidade filosófica a unir os atores políticos, cujos laços dependiam de relações de caráter pessoal, como casamentos, parentescos e amizades, sendo, por conseguinte, voláteis. Isso explica, em parte, os usos flexíveis de optimates e populares por Cícero. Para Nótári, optimates e populares foram apenas grupos de homens políticos que buscaram atingir seus objetivos por meio do apoio da assembleia popular (populares) ou do Senado (optimates). Cf. MARTINO. Storia della costituzione romana, v. III, op. cit., p. 130-131; TEMPEST, Kathryn. Cicero: politics and persuasion in Ancient Rome. London: Continuum, 2011, p. 78-79; FERRARY, Jean-Louis. Optimates et populares, op. cit., p. 227; RODDAZ. Popularis, populisme, popularité, op. cit., p. 99. CÍCERO. Sest. 105. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 356; EAGLE, E. D. Catiline and the Concordia Ordinum. Phoenix, v. 3, n. 1, p. 15-30, primavera 1949, p. 16-17; WIRSZUBSKI, Chaïm. Cicero’s cum dignitate otium: a reconsideration. The Journal of Roman Studies, v. 44, p. 1-13, 1954, p. 6; NÓTÁRI, Tamás. La teoría del Estado de Cicerón en su “Oratio pro Sestio”. Revista de Estudios Histórico-Jurídicos, Valparaíso, XXXII, p. 197-217, 2010, p. 206-207. Ver CÍCERO. Rep. I, 69; III, 23; JÚLIO CÉSAR. De bello civili I, 22, 5. Ferrary elucida duas correntes interpretativas originadas de GELZER. The Roman Nobility, op. cit. e MÜNZER, Friedrich. Roman aristocratic parties and families. Trad. Thérèse Ridley. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1999. | 129 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSassembleia do povo616, os optimates são constrangidos a combatê-los no terreno deles617. É o caso do debate sobre a liberdade. Para os populares, a verdadeira liberdade possui tons democráticos, requer igualdade numérica, adequada à maiestas populi Romani. Para os optimates, por outro lado, não há liberdade sem dignitas, pois isso seria mera licentia, perversão da libertas; os interesses da res publica não se confundem com o desejo dos muitos e as vantagens do povo (commoda)618. Na boca de um defensor da ordem republicana, licentia podia ser o abuso de poder pelos reis e seus colaboradores; na de um popularis, os abusos de um magistrado ou da nobilitas; na de um optimate, os excessos dos comícios, dos tribunos sediciosos ou das massas619. Voltaremos a isso em breve. Fato é que Cícero alinha-se aos optimates e, como tal, aproveita-se do significado de popularis como “aquele que agrada ao povo”, contrapondo a “plebe da assembleia tumultuária” (plebis contionalis) ao “verdadeiro povo”, que se reunia nos comícios centuriatos organizados segundo uma estrutura censitária, em favor do interesse geral (utilitas publica)620:Pero, con todo, esta vía y este medio de acceder a la carrera política eran mucho más temibles en el pasado, cuando en muchas cuestiones las preo-cupaciones de las masas y los intereses del pue-blo no coincidían con el bien público [cum multis in rebus multitudinis studium aut populi commodum ab utilitate rei publicae discrepabat]. Una ley electo-ral era presentada por Lucio Casio; el pueblo creía que estaba en juego su propia libertad; los líderes de la ciudad no estaban de acuerdo y, respecto a la seguridad de los optimates, temían la temeridad 616 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 728-729.617 Ibid., p. 730. São exemplos Druso pai em 122, Crasso para reforma do júri em 106, o projeto de Druso filho em 91, os discursos de Cícero ao povo contra o projeto de lei agrária em 63, as distribuições frumentárias de Catão de Útica em 62. Contrastar, também os discursos ao povo de Cícero e os posicionamentos tribunícios e populares reconstituídos por SALÚSTIO. Bellum Catilinae 38; Bellum Iugurthinum 41-42; Historiae 1, 11-12 (fragmentos).618 ATKINS. Cicero on politics and the limits of reason, op. cit., p. 109-110.619 BRUNT. The fall of the Roman Republic and related essays, op. cit., p. 320-321. CÍCERO. Rep. I, 44; Qfr. I, 1, 22 (tam immoderata libertas); TÍTO LÍVIO. Ab urbe condita III, 57, 6; 67, 6; XXIII, 2, 1 (licentia plebis sine modo libertatem exercentis).620 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 749-750.130 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSde la masa y la libertad que conllevaba la tablilla del voto. Tiberio Graco proponía una ley agraria; al pueblo le agradaba pues parecía consolidar la situación económica de las clases bajas. Los opti-mates se manifestaban en contra porque se daban cuenta de que se provocaba la discordia y pensaban que, al ser privados los ricos de unas posesiones de las que disfrutaban desde hacía mucho tiempo, se estaba privando a la República de sus defensores. Gayo Graco proponía una ley frumentaria: el tema era del agrado de la plebe, pues aseguraba un sus-tento abundante sin trabajo; las gentes de bien se oponían porque pensaban que se apartaba a la ple-be de la actividad para llevarla a la pereza y veían que se agotaba el tesoro público.621Na visão de Cícero, os populares encarnam o pior tipo de cidadão, pois procuram fazer bem ao povo por meios torpes, na verdade, utilizando todos os romanos como meio. No entanto, há o vere popularis, que não precisa de elogios, distribuição de alimentos e leis agrárias para realizar os interesses do povo e alcançar a necessária concórdia entre as ordines, tal como os veteres,populares, homens honrados do passado622, contrastando com figuras como Saturnino, exemplo de seditiosus623. Os optimates, por outro lado, compartilham um ponto de vista em favor da res publica, agem politicamente bem. Cícero apresenta um espectro amplo de homens bons: alguns apenas comungam um ideário comum, outros realizam esse ideário na vida política, são os principes, os summi viri et conservatores civitatis624. Com essa contraposição, ele quer persuadir a audiência de que o sentido de optimates é mais abrangente do que acusam os populares, pois tem a ver menos com riqueza e influência do que com um desejo de preservação da constituição, que lhes conferem, naturalmente, auctoritas e dignitas. Eis a definição bastante alargada de optimates:621 CÍCERO. Sest. 103. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 354-355. 622 RODDAZ. Popularis, populisme, popularité, op. cit., p. 98-99.623 CÍCERO. Sest. 37; 101; 104-105; Har. resp. 43; Brut. 24; Rab. Perd. 20.624 BOYANCÉ, Pierre. Cum dignitate otium. Revue des Études Anciennes, t. 43, n. 3-4, p. 172-191, 1941, p. 179-180. | 131 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS¿Quiénes son, pues, esos mejores? Si preguntas por su número, infinitos (pues de otra forma no podríamos subsistir); son los primeros a la hora de adoptar decisiones públicas, los que secundan el modo de pensar de éstos, los hombres de las clases superiores, los que tienen acceso a la curia, romanos que residen en los municipios y en el campo; son hombres de negocios e incluso libertos. Su número, como he dicho, es de una amplia y variada extensión. Pero, para evitar equívocos, esta clase en su conjunto puede ser definida y delimitada brevemente: pertenecen a los “optimates” todos los que no son criminales ni malvados por naturaleza ni desenfrenados ni están acuciados por dificultades domésticas. De ello se deduce, por tanto, que esos a los que tú has denominado “casta” [nationem] son hombres íntegros, sanos y poseedores de una bue-na situación privada. Los que, en el gobierno de la República, se ponen al servicio de lo deseos, intere-ses y opiniones de ellos, son defensores de los “opti-mates” y, al mismo tiempo, son considerados entre los optimates más influyentes y distinguidos, entre los líderes del Estado.625Como se lê no Pro Sestio, os optimates não buscam aplauso e apreço do povo, e sim obter o reconhecimento dos bons cidadãos (optimus quisque). Os optimi podem pertencer às grandes famílias, mas podem também ser agricultores, comerciantes, escravos libertos, enfim, todo aquele que, sem ser malvado, quer a concórdia. Com efeito, o que une pessoas tão diversas é a preservação da paz e a manutenção da dignidade:¿Cuál es, entonces, la meta a la que deberían mirar y orientar su ruta estos pilotos de la nave de la repú-blica? Aquello que es lo mejor y más deseable para todos los hombres sanos, honestos y felices: una vida apacible con honor. Todos los que desean esto 625 CÍCERO. Sest. 97; 101; 104-105. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 350.132 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSson considerados optimates; quienes lo consiguen, hombres ilustres y protectores de la ciudad. Pues ni es conveniente que los hombres se dejen arrastrar por el honor de desempeñar cargos públicos hasta el punto de no mirar por su tranquilidad, ni que se entreguen a una vida apacible que los aparte de los honores.626Poucos eram os homens políticos que ainda restavam firmes na virtude. Os populares propagavam-se aceleradamente, subvertendo o tribunato da plebe, “guardião e defensor da liberdade”627, e a provocatio, “protetora da cidade e garante da liberdade”628. De fato, a crítica de Cícero aos populares tem natureza diversa do antigo conflito entre patrícios e plebeus, cujas conquistas já são parte da constituição e velam por valores caros a toda a comunidade629. O que mira é a preservação da igualdade proporcional, conforme as atribuições constitucionais, o que inclui mediações e limitações à tomada de decisão pelo povo, como os instrumento de contraposição à atividade comicial630. É certo que havia muitos autodenominados optimates que deixavam rastros de abusos e desmandos631 e se valiam da identificação com a res publica para se apropriarem da coisa pública632. Porém, não muito diferente eram as incapacidades dos populares. Surgia, então, a demanda por um governo apto a garantir a segurança dos grupos dominantes e a paz geral. O orador alerta para isso, mas logo alguns se aproveitarão desse cenário para canalizar seus desígnios pessoais633, comprometendo o equilíbrio constitucional634. 626 CÍCERO. Sest. 98. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 351 (adaptado).627 CÍCERO. Leg. agr. II, 15; SYME. The Roman Revolution, op. cit., p. 16.628 CÍCERO. De or. II, 199.629 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 763-765. Em sentido contrário, WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the late Republic and early Principate, op. cit., p. 51-52. Ver CÍCERO. Leg. agr. II, 4.630 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 760.631 SYME. The Roman Revolution, op. cit., p. 18-22.632 ROLDÁN HERVÁS, José Manuel. El orden constitucional romano en la primera mitad del siglo II a.C.: de la res publica aristocrática a la res publica oligárquica. Gerión, Madrid, v. 2, p. 67-99, 1984, p. 92-93.633 MARTINO. Storia della costituzione romana, v. III, op. cit., p. 137. Ver os interesses dos diferentes grupos sociais que se aproximavam dos populares em EAGLE. Catiline and the Concordia Ordinum, op. cit., p. 19.634 MARTINO. Storia della costituzione romana, v. II, op. cit., p. 300 e 412-413. | 133 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSCom efeito, para Cícero, a culpa pelo declínio de Roma é dos próprios optimates, por seu descaso com os costumes ancestrais e ambição cega. Ora, é na cabeça do corpo político que começa a corrupção, crença comum na Antiguidade. Os senadores, então, devem ser cidadãos virtuosos, probos, experientes, que servirão de modelo a todos os demais. Cícero exorta o povo a apoiar o Senado na missão de evitar o ocaso, por meio da defesa e da obediência de seu consilium, no exercício da potestas. A potestas pertencer ao populus, enquanto a auctoritas ao Senatus, é o que garante a moderates et concors civitatis status635.Desde o tempo dos Gracos foram realizadas tentativas de restauração da ordem e recondução do Senado à plena liderança da cidade, nenhuma bem-sucedida. A única alternativa era intentar uma nova política de concórdia, mesmo ao preço de certas concessões. Essa é a ambição de Cícero a partir de seu consulado em 63 a.C.636 Declara-se defensor do otium et concordia637, na discussão sobre a lei agrária Rulo, e por isso chama para si tal matéria, pois o seu dever é o interesse do povo638. Em Pro Murena639, a concórdia está ao lado da paz, da liberdade, da saúde, da vida e, uma vez mais, do otium, a serem preservados com a reconciliação e a união entre senadores e cavaleiros640. Mas não se resume a esses dois grupos. No De lege agraria deixa entrever o desejo de uma concórdia mais ampla do que aquela dos homens bons de Quinto. Quer ser um cônsul “popular” e apresentar tais motes como valores populares. Na quarta Catilinária, a celebração da concordia ordinum é inserida em uma descrição de toda a cidade, unida na luta contra Catilina e seus cúmplices641. É o consenso de todos os bons (consenso omnium bonorum), diversas vezes mencionada642, inclusive para além de Roma: clama também a união de toda a Itália643.635 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 169-170. CÍCERO. Leg. III, 28-32.636 FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, op. cit., p. 767-768.637 CÍCERO. Leg. agr. III, 4.638 CÍCERO. Leg agr. I, 23; II, 9.639 CÍCERO. Mur. 78. Ver também QUINTO CÍCERO. Commentariolum petitionis 53.640 CÍCERO. Cat. IV, 15. 641 CÍCERO.,Cat. IV, 14.642 CÍCERO. Cat. I, 32; Rab. Perd. 2; 4; Fam. V, 2, 8; Att. I, 16, 6.643 CÍCERO. Att. 1, 14, 4; FERRARY. Le idee politiche a Roma nell’epoca repubblicana, 134 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSA res publica é constituída pela comunidade e pelo consenso, jurídico e político, manifestado no justo equilíbrio da constituição mista (magistrados, Senado e povo), na concordia ordinum (entre senadores e cavaleiros) e no consensus omnium bonorum (entre todos do povo). Essas concepções resultam da percepção de Cícero de que a busca por interesses particulares em detrimento dos interesses comuns é nociva à própria preservação humana. Os homens políticos deveriam agir sempre considerando o conjunto dos cidadãos, pleiteando concordia, cooperação, acordo, unidade, pois é vital para a estabilidade da constituição, o que, na forma mista, é um desafio enorme644. Mas os romanos não têm colaborado. Há uma perversa oposição entre gentes honestas, que visam à auctoritas senatus, à populi Romani libertas e à rei publicae salus, e cidadãos que atacam o equilíbrio político, como Marco Antônio e seus partidários: “¿Son verdaderamente partidos [sunt partes] los que hay hoy cuando de un lado están, la autoridad del Senado, la libertad del pueblo romano y la salvación de la república, y de otro la muerte de los buenos ciudadanos y el reparto de Roma y de Italia?”645. A libertas do povo não está em contradição com a auctoritas do Senado: a salus rei publicae depende da harmonização de ambas646. E Cícero afirma isso mesmo após ter a esperança abalada em 61 a.C., como descreve em carta a Ático: “Así el dichoso año ha tirado por tierra los dos fundamentos del gobierno que yo solo había asegurado: en efecto, destruyó la autoridad del senado y deshizo la concordia de los órdenes”647. Contudo, como colocar em prática essa concórdia? Decepções como a mencionada acima davam-lhe ciência das dificuldades. Ao longo de toda a sua vida não pôde presenciar uma concordia duradoura. A resposta a ela seria também a resposta para o equilíbrio da constituição. Cícero descobre um fator indispensável: homens bons, probos, com visão política e virtuosidade. Roma fora fundada e fortalecida por líderes motivados pelo dever em relação à res publica, na busca pelo interesse comum, fator regente da mistura op. cit., p. 768-769; SYME. The Roman Revolution, op. cit., p. 16.644 TEMPEST. Cicero: politics and persuasion in Ancient Rome, op. cit., p. 76; PÖSCHL. Quelques principes fundamentaux de la politique de Cicéron, op. cit., p. 340; CÍCERO. Har. resp. 61; Off. I, 85; SALÚSTIO. Bellum Iugurthinum 10.645 CÍCERO. Phil. XIII, 47. Cf. Filípicas, op. cit., p. 208.646 IACOBONNI. Le sens de la libertas au sein du mos maiorum chez Ciceron, op. cit.647 CÍCERO. Att. I, 18, 3. Cf. Cartas I, op. cit., p. 95 | 135 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSconstitucional. Não apenas a fundação, mas também a conservação requer um líder, o rector, gubernator ou princeps, que age acima dos interesses pessoais ou de grupos648. São estes os diferentes nomes que Cícero atribui ao melhor homem político, que exercerá na res publica um papel providencial. Na história de interpretação do pensamento ciceroniano, alguns autores viram nesse rector o reflexo do ideal do bom rex, outros uma antecipação do Principado, ou o topos do aner archikos discutido em Platão, Aristóteles, Teofrasto, Dicearco e Panécio, e ainda uma proposta original que tinha por modelo Cipião, Pompeu ou a si próprio649. No entanto, a inspiração de Cícero era o princeps senatus, o senador que os censores, ao efetuarem a lectio senatus, colocavam no topo da lista da qual estavam encarregados de revisar. Por decorreência dessa posição, era sempre interrogado em primeiro lugar pelo magistrado em consulta ao Senado, prevalecendo em dignitas sobre todos os outros senadores650. Em geral um antigo censor, encarna na sua pessoa a dignidade da instituição e a função de defensor dos interesses da res publica651. Mas entre o século I e II a.C., o princeps senatus entra em declínio irreversível652. Dele podemos extrair algumas das principais qualidades que Cícero espera do cidadão romano. O melhor homem político une moral e política, com a subordinação desta àquela: o praestans vir deve encarnar a virtude perfeita, ao menos aquela possível ao homem, submetendo as paixões à razão, despontando em moderação, sabedoria e constante esforço de aprimoramento interior, para servir de modelo aos seus concidadãos653. De fato, devota-se ao bem público, sacrificando as aspirações egoístas em favor da felicidade coletiva 648 ASMIS. A new kind of model, op. cit., p. 378.649 KUPISZEWSKI. La nozione di stato nel De republica di Cicerone, op. cit., p. 195.650 BONNEFOND-COUDRY, Marianne. Le princeps senatus: vie et mort d’une institution républicaine. Mélanges de l’École française de Rome. Antiquité, t. 105, n. 1, p. 103-134, 1993, p. 104-108; CÍCERO. Rep. II, 35.651 BONNEFOND-COUDRY. Le princeps senatus, op. cit., p. 111; CÍCERO. Scaur. 46; Att. 1, 13, 2; Brut. 108; 112.652 BONNEFOND-COUDRY. Le princeps senatus, op. cit., p. 105; 117 et seq; TITO LÍVIO. Ab urbe condita XXVII, 11, 11-12; AULO GÉLIO. Noctes atticae XIV, 7; AUGUSTO. Res gestae 7 (“Princeps senatus fui usque ad eum diem quo scripseram haec per annos quadraginta”); MOMMSEN. Le droit public romain, t. VII, op. cit., p. 156-158; WILLEMS, Pierre Gaspard Hubert. Le sénat de la république romaine: sa composition et ses attributions. Louvain: Ch. Peeters; Berlin: Calvary et Cie., 1883, t. I, p. 111-123.653 CÍCERO. Rep. VI, 1.136 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSe oferecendo-se “como lei aos seus concidadãos”654, para fomentar uma res publica regida pela virtude655. Tal como em Platão, e na Antiguidade em geral, a república ciceroniana liga a política à perfeição interior do homem, o governante à direção moral do povo656. No entanto, reis-filósofos ao modo platônico não são concretizáveis, pois nunca governantes de tipo divino salvaram as formas de governo simples da degeneração657. O recurso de Cícero à filosofia grega vem acompanhado da experiência prática, na certeza de que a teoria política deve voltar-se para questões da vida da res publica. Por isso, o homem político não pode ser uma elaboração teórica irrealizável no plano humano. A composição ciceroniana vale-se de características exigentes, não encontradas facilmente entre os cidadãos de seu tempo, mas o autor sabe que elas já se manifestaram em líderes do passado, até porque é da tradição que as extrai. Ademais, como sempre tem em vista aquilo que é possível ao homem, embora seus concidadãos não tenham no momento tais virtudes, poderão, com esforço, conquistá-las. Ainda que errem ou falhem nesse trajeto, estarão no sentido correto, que é o bem da res publica. Portanto, o rector ou princeps pode sim não ser um homem concreto, mas é um objetivo a ser alcançado por todos, que podem se inspirar nele para conduzir as próprias ações cotidianas. Mesmo um rector histórico oferece nada mais que algumas qualidades, pois, enquanto homem, sua perfeição é aquela humanamente possível:[...] um duplo plano: um, o da especulação abstrata, onde afloram ideias de origem grega; o outro, o da realização concreta, que se integra à vida política de Roma. Para a teoria do ‘optimus status civitatis’, a análise de Políbio da constituição romana do sé-culo I a.C. permitiu que Cicero se movesse de um para o outro. Para a teoria do ‘optimus civis’, é a du-pla personalidade do próprio autor, tanto teórico de vasta leitura como homem de estado de rica expe-riência, que restabeleceu a unidade, garantindo as 654 CÍCERO. Rep. I, 52.655 CÍCERO. Rep. V, 5.656 CÍCERO. Rep. V, 8; Qfr. I, 1, 24; Off. I, 85; II, 72; 83.657 NICGORSKI, Walter. Cicero’s focus: from the best regime to the model statesman. Political Theory, v. 19, n. 2, p. 230-251,,maio 1991, p. 240. | 137 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOStransposições necessárias de um registro a outro. [...] A frequentação do pensamento grego, embe-lezando retrospectivamente seu passado político, conferiu aos seus sonhos um caráter de idealidade que os faz superar as condições de qualquer expe-riência possível.658Quais são então essas qualidades situadas entre a filosofia e a experiência?O bom governante tem como marca a abnegação, o desinteresse pelas riquezas e o dever de beneficência em relação ao povo, como defendê-lo das exações dos publicanos, usando de doçura e agindo como tutor moral659, diversamente de Sula e César. Entre as muitas qualidades (ornamentum)660 que Cícero busca nos maiores, razão pela qual foram grandes, estão o genus661, lastro familiar venerável; a divitiae662, riqueza; opes663, influência ou força política; a temperantia664, medida, justa proporção; a gravitas665, autoridade pessoal e moral; enfim, a virtus666, síntese das qualidades pessoais próprias 658 GRENADE. Remarques sur la theorie ciceronienne dite du “principat”, op. cit., p. 59 (tradução nossa).659 CÍCERO. Qfr. I, 1, 32; Att. VI, 6, 2.660 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 234.661 CÍCERO. Mur. 15-16. Próximo, mas distinto, de nobile. Cf. CÍCERO. Parad. stoic. III, 20 (“generosa ac nobili virgine”); Verr. II, 5, 180 (“nobili genere natus”).662 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 235-237. Sobre a riqueza, ver Off. I, 25; III, 39; Part. or. 87; De inv. I, 22. 663 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 237-238. Cf. CÍCERO. Verr. II, 1, 3; Planc. 73; Fam. I, 9, 21; VII, 2, 3; Phil. V, 48-49; Rep. I, 48. Junto a posse, o exercício de influência sobre alguém, e termos próximos. Cf. Rosc. Am. 4; Verr. II, 3, 130; Qfr. I, 2, 3; Rep. III, 24; Phil. XII, 13; Sest. 105; Planc. 25; Off. I, 79; II, 34; III, 100. Também em QUINTO CÍCERO. Commentariolum petitionis 32.664 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 259-265. Cf. CÍCERO. Tusc. III, 16; De inv. II, 164; Part. or. 87; Fin. V, 67; Nat. D. III, 38; Amic. 47; Off. III, 117; Leg. agr. II, 64; Leg. Man. 40-41; Mur. 30.665 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 279 et seq. Cf. CÍCERO. Pis. 19; 58; Planc. 50; Off. I, 112; III, 93; Balb. 49-50; Cael. 11; 28; 33; 35; Dom. 68; Mil. 39; Sest. 19; Clu. 196; Flac. 6; De or. II, 228; III, 42; Deiot. 27; Phil. II, 14; XI, 15; XII, 5; Brut. 325.666 CÍCERO. Tusc. II, 43. Cf. Disputaciones tusculanas. Trad. Alberto Medina González. Madrid: Gredos, 2005, p. 241: “A ver si va a resultar que, aunque todas las disposiciones rectas del alma reciben el nombre de virtudes, este no es el nombre adecuado para 138 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSdo vir. Assim resume Grenade: “Esse homem de Estado, que se impõe por seu mérito pessoal, e cuja tarefa é guiar o seu povo para a felicidade, deve usar, no exercício do poder, de uma autoridade benevolente que o torne pai de seus concidadãos e que os inspire com sentimentos de afeição e reconhecimento”667.O princeps ciceroniano não exerce uma magistratura precisa ou possui uma autoridade militar definida. Essa imprecisão é intencional. O filósofo faz um retrato moral, sem pretender detalhar funções668. Mais, a ausência de explicitação de seus papéis concretos na melhor constituição deve-se ao fato de ele se confunde com o exercício de todas as tarefas exigidas de um bom cidadão, como magistrado, senador e eleitor669, à medida que lhe seja necessário para fazer possível a concordia:O primeiro ideal político de Cícero, um homem de posição independente, foi precisamente o de uma harmonia de classes, a concordia ordinum. Somen-te com ela a crise constitucional parecia superável, da mesma forma que somente através do acordo definitivo entre patrícios e plebeus pôde surgir aquela mesma constituição republicana. Mas logo teve que perceber que o homem de partido dificil-mente renuncia aos seus próprios pontos de vista interessados para alcançar uma concordia em de-fesa do bem comum. Assim, desta fase que pode-ríamos chamar de democrática, Cícero foi para outra mais aristocrática, na qual seus ideais se con-designarlas a todas, sino que todas han tomado su nombre de la que destacaba sobre las demás.”. Ver Mur. 18; Verr. II, 5, 50; Tusc. I, 3; IV, 3; Brut. 75; Phil. IV, 13. Também Brut. 232; 235; Rep. I, 2; Off. I, 19; Mur. 30; Planc. 80. Ver ainda Sest. 62; 86; Dom. 39; Mil. 3; 6; 41; 81; 89; 99; Pis. 79; Phil. VII, 6; VIII, 1; IX, 9; X, 9; 11; 16; Cat. I, 3; III, 14; 26; 28.667 GRENADE. Remarques sur la theorie ciceronienne dite du “principat”, op. cit., p. 49 (tradução nossa); CÍCERO. Off. II, 77.668 GRENADE. Remarques sur la theorie ciceronienne dite du “principat”, op. cit., p. 51.669 CÍCERO. Rep. I, 56. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 72-73. Rizzo observa que os atributos do princeps apresentados no De re publica correspondem em grande medida aos dos personagens civicamente empenhados das Verrinas. Isso representaria a evolução conceitual de um ideal ético-político que amadurecerá na figura do líder do De re publica. Cf. RIZZO. “Princeps civitatis” nelle Verrine, op. cit.; CÍCERO. Verr. II, 4, 50; 85-86. | 139 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOScretizavam em uma unanimidade, não de todos, mas daqueles homens bons que militavam em um ou outro lado, mas que eram racionais o suficiente para chegar a um acordo; esse é o ideal ciceroniano do consensus omnium bonorum, onde os boni não são exclusivamente os nobres, mas os melhores de ambos os lados, aqueles que, por suas virtudes cívi-cas, são capazes de colaborar nas decisões públicas e de tomar o império alternadamente, estimulados por um nobre afã de glória; bons homens, não por causa de sua linhagem, mas por causa de seus mé-ritos, que, é claro, se adequavam perfeitamente a um hom*o novus como ele. Mas essa mesma ideia de seleção por mérito o leva a enfatizar a posição do melhor, do princeps. Não se trata mais do nobre mais distinguido, o antigo princeps civitatis, mas de uma nova figura que surge da especulação oratória como aquele que assume espontaneamente o papel de promotor de iniciativas políticas, aquele que se presta a defender a república, um pouco como o próprio Cícero pensou ter feito no ano 63. No pen-samento dos últimos anos, essa figura do princeps, desprovida de suas últimas adesões pragmáticas, históricas ou retóricas, torna-se o centro de todo o sistema. A república tem um defensor permanente, não mais eventual e alternativo, em um princeps. Esta última fase pode parecer monárquica para nós já, e de certa forma era, mas aqui está a questão: Cícero não podia ser monárquico.670Justamente, para garantir o equilíbrio expressa na concordia, outra qualidade é conhecer adequadamente as tendências de modificação das formas de governo. Como o tempero entre as forças políticas e sociais é o que torna possível a estabilidade, inclusive indefinidamente671, o rector, enquanto 670 D’ORS, Alvaro. Cicerón, sobre el estado de excepción. Cuadernos de la Fundación Pastor, Madrid, n. 3, p. 11-31, 1961, p. 26 (tradução nossa).671 CÍCERO. Rep. III, 34.140 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSvir prudens672, pode compreender o curso e as mudanças para, então, antecipá-las e evitá-las. Por sua prudência, torna-se via para a melhor constituição673:Se producirá entonces la vuelta del ciclo, cuyo mo-vimiento de rotación natural podéis aprender a reconocer desde el primer momento [Hic ille iam vertetur orbis, cuius naturalem motum atque circui-tum a primo,discite adgnoscere]. El fundamento de la prudencia política, a la que se refiere todo nuestro discurso, está en ver los rumbos y cambios de las repúblicas, de modo que, al saber hacia dónde se inclina cada una, podáis contenerla o poner antes remedio [retinere aut ante possitis occurrere].674 Como homem prudente, o rector pode ver antes, identificando as tendências, decifrando os movimentos, tanto pelo conhecimento teórico quanto pelo conhecimento prático de que goza: “as formas de governo dão voltas, degeneram e regeneram, formam ciclos, não necessariamente pré-estabelecidos. Conhecê-los é próprio do sábio [...]”675. Por compreender o seu mundo e sua constituição, no presente e na sua história, além dos princípios da política, poderá ser chamado de sábio ou mesmo divino:[...] y es admirable el recorrido como circular de los sucesivos cambios en las repúblicas, cuyo conoci-miento corresponde al hombre sabio; pero el pre-ver las degeneraciones, como timonel que modera el curso de la república y la conserva con su potes-tad, corresponde a un gran hombre, casi divino.676672 CÍCERO. Verr. II, 3, 16; 5, 85; Qfr. I, 1, 35; Nat. D. II, 79; 147; III, 38; De inv. II, 160; Off. I, 123; 153; Fin. IV, 76; V, 67; Verr. II, 5, 85; Caec. 86; De or. I, 197.673 NICGORSKI. Cicero’s focus: from the best regime to the model statesman, op. cit., p. 242-243; CÍCERO. Rep. II, 67; 69. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 121-122.674 CÍCERO. Rep. II, 45. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 108-109 675 BERNARDO. O De re publica de Cícero, op. cit., p. 41-42.676 CÍCERO. Rep. I, 45. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 66. Sobre as hipóteses de degenerações e regenerações, que já estudamos, Rep. I, 65; 68. | 141 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSPorém, o rector não está alheio à ordem política e social tal como um deus. Ele se forma em meio a costumes e leis que, por sua vez, deverão por ele ser defendidos e produzidos, quer dizer, cumpre-lhe fortalecer e desenvolver as instituições que o gestaram. Como ninguém pode viver bem salvo em uma boa constituição, há uma interação mútua, se não interdependência, entre bons líderes e boas instituições. Eis a razão de a melhor constituição depender da ação de muitos homens políticos ao longo do tempo e segundo a experiência677.O princeps é modelo a ser imitado, como senadores e magistrados atuantes em prol da verdadeira justiça678. Por um lado, se promove a concórdia na res publica, ecoa a concórdia da alma humana platônica, havendo um dever de contemplar a si mesmo679. Por outro, como um espelho, favorece o encontro da necessária harmonia citadina:Sólo a un hombre así, pues en esto consiste todo lo demás; un hombre que no deje de corregirse y examinarse a sí mismo; que atraiga a los otros a que le imiten; que con el esplendor de su alma y de su vida ofrezca a los otros ciudadanos como un espejo. Porque del mismo modo que en los instrumentos de cuerda o de viento, o en el mismo canto de varias voces, debe guardarse un concierto que da por su mismo ajuste unidad y congruencia a muy distin-tas voces, que los oídos educados no toleran que se altere o desentone, y ese concierto, sin embargo, se hace concorde y congruente por el gobierno de voces muy distintas, así también, una ciudad bien gobernada es congruente por la unidad de muy dis-tintas personas, por la concordia de las clases al-tas, bajas y medias, como los sonidos. Y la que los músicos llaman armonía en el canto, es lo que en la ciudad se llama concordia, vínculo de bienestar 677 NICGORSKI. Cicero’s focus: from the best regime to the model statesman, op. cit., p. 244.678 DUCOS, Michèle. Les Magistrats et le pouvoir dans les traités politique de Cicéron. Ciceroniana, v. 7 (Atti del VII Colloquium Tullianum - Varsavia, 11-14 maggio 1989), p. 83-96, 1990, p. 95.679 ASMIS. A new kind of model, op. cit., p. 405-406. CÍCERO. De re publica II, 69.142 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSseguro y óptimo para toda república, pues ésta no puede subsistir sin la justicia.680Essa alegoria simboliza o fato de o rector fornecer a si mesmo como medida para os seus concidadãos, critério de comportamento, de promoção das virtudes, como a prudência, e busca pela glória, mas sempre a partir e para a res publica, à qual se dedica integralmente:En cambio, ¿qué puede haber mejor cuando la vir-tud gobierna la república? [virtute vero gubernante rem publicam, quid potest esse praeclarius?] Cuando el que manda a los demás no es esclavo de su ambi-ción, cuando él mismo vive todo aquello que predi-ca y exige a los ciudadanos, sin imponer al pueblo unas leyes a las que él no obedece, sino ofreciendo a sus ciudadanos su propia conducta como ley [sed suam vitam ut legem praefert suis civibus]. Si pudiera gobernar un solo hombre, no habría necesidad de más; si todos le consideraran como el más noble y llegaran a consentir en ello, nadie buscaría ya otros jefes.681Com isso, o rector é a personificação de toda a constituição mista. Independentemente de suas eventuais funções oficiais, sustenta, simultaneamente, as três partes do governo. Por exemplo, pode agir como princeps senatus, sendo o primeiro a apresentar a sua opinião e orientar as decisões, ou como princeps rei publicae, buscando retomar a unidade original do povo fragmentado em duas partes (divisit populum unum in duas partis)682. Para o sucesso em todas essas frentes, o primeiro passo é iniciar-se na teoria política, conhecer como uma constituição deve ser organizada, para, somente então, seguir à ação prática. Para dar respostas às circunstâncias cambiantes, lidar com as diversas faces da realidade, é necessário refletir, principalmente porque não reconfigurará a forma ancestral, apenas fazendo os ajustes 680 CÍCERO. Rep. II, 69. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 122.681 CÍCERO. Rep. I, 52. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 70-71. Em Leg. III, 28, a ordem senatorial é exemplo. 682 CÍCERO. Rep. I, 31-32; 34. | 143 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSindispensáveis para mantê-la balanceada683. Como prudens, e também tutor, procurator e sapiens, o bom homem político deve ser capaz de identificar os aspectos da natureza humana em relação aos quais precisa ceder684. Essa prudência falta ao tirano, vide Tarquínio685, cuja menção por Cícero junto ao estadista modelo ajuda a afastar a imagem de intangibilidade do padrão proposto, que é, na verdade, um ideal realizável, atestado por exemplos da história romana686. Esses exempla evidenciam, aliás, que o desenvolvimento da natureza racional humana não se restringe a um único sábio iluminado, pois muitos foram os maiores. Assim, também vários podem ser os rectores. Portanto, a figura do princeps, além de opor-se diametralmente à do tirano, também não manifesta um elemento monárquico, como quiseram ver diversos comentadores da obra ciceroniana687.Admitida a capacidade de compreensão afiada das transformações políticas do rector, é possível afirmar, como pretendem alguns intérpretes, que a Cícero teria faltado essa mesma habilidade? Essa acusação não parece ter sentido, vez que foi ele mesmo quem propôs tal reflexão e quer se fazer ouvido a partir de suas obras688. Outros dizem que Cícero pode ter se visto como um princeps em seu consulado; ou como conselheiro do princeps, a exemplo de Platão com os tiranos de Siracusa, em relação a Pompeu689; ou como diretor espiritual do princeps, como Aristóteles com Alexandre, em relação a César690 ou ao jovem Otávio691. Essas associações são possíveis, mas a insistência na frustração desses intentos, pela “incapacidade de Pompeu, o gênio de Cesar, a ambição de Otávio”692, não esconde que o tom negativo dos críticos decorre 683 CÍCERO. Rep. I, 33; ATKINS. Cicero on politics and the limits of reason, op. cit., p. 25; ASMIS. A new kind of model, op. cit., p. 412.684 CÍCERO. Rep. II, 67-69; V,,5-8; VI, 13.685 CÍCERO. Rep. I, 51.686 NICGORSKI. Cicero’s focus: from the best regime to the model statesman, op. cit., p. 241-242.687 ASMIS. A new kind of model, op. cit., p. 410-411. Sobre as clássicas discussões sobre o princeps e suas possíveis ligações com o princípio monárquico, ver LEPORE, Ettore. Il princeps ciceroniano e gli ideali politici della tarda Reppublica. Bologna: Il Mulino, 1954.688 Como EVERITT, Anthony. Cicerón. Trad. Andrea Morales. Barcelona: Edhasa, 2007, p. 160-161.689 CÍCERO. Fam. II, 8, 2; V, 7; VIII, 1, 4.690 CÍCERO. Att. XII, 40, 2; XIII, 28, 2.691 CÍCERO. Phil. V, 43; Att. XVI, 11, 6.692 GRENADE. Remarques sur la theorie ciceronienne dite du “principat”, op. cit., p. 144 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSde má compreensão do real sentido de princeps, confundindo-o com o príncipe imperial693. O paralelo entre o princeps ciceroniano e o Principado de Augusto é muito mais frágil do que se costuma crer, pois, como afirma D’Ors, trata-se apenas de um entre vários caminhos possíveis para compreender as transformações daquele momento694. Mais, há um projeto de delineamento do melhor homem, em sentido político e moral. Em carta a Quinto695, Cícero revela que o seu objetivo no De re publica é definir as conexões necessárias entre o optimus status civitatis e o optimus civis. O rector então representaria essa figura, a partir da união da teoria grega com experiência pessoal. Essa ambição ultrapassa as simples esperanças depositadas em um Pompeu ou um Augusto. É uma ideia desenvolvida ao longo de vários textos, entre orações, epístolas e tratados, vide as qualidades exigidas do bom governador na Carta a Quinto I, 1 e dos estadistas no De officiis696.Resta-nos, ainda, uma questão. O que move o rector a assim agir? Por que promover a concordia, contribuir para a estabilidade da constituição? No Sonho de Cipião, é revelado que a glória a ser obtida no céu pelos bons estadistas é o maior incentivo para lutarem, no mundo terreno, por estabilidade e ordem, em suas almas e na res publica697:60-61 (tradução nossa).693 Para Grenade, Cícero não foi bem visto por Augusto, por sua oposição a César e proximidade com inimigos. Também não existiriam provas da reabilitação indicada por Plutarco. Aliás, Augusto teria contribuído para privar Cícero de glória. Virgílio, na Eneida, optou por Catão como debelador da conjuração de Catilina. De todo modo, o termo princeps aparece na Res Gestae. Cf. GRENADE. Remarques sur la théorie cicéro-nienne dite du “principat”, op. cit., p. 36-41; SALGADO, Joaquim Carlos. Augustus: a fundação do Estado Ocidental. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 104, p. 229-261, jan/jun 2012; PLUTARCO. Cícero 45, 6; 46; 49; Paralelo de Demóstenes e Cícero 3, 1; APIANO. História romana III, 92; IV, 51; DIO CÁSSIO. História romana XLVII, 7-8; VIRGÍLIO. Aeneis VIII, 668 et seq; AUGUSTO. Res gestae 13; 30, 1; 32, 3.694 D’ORS. Introducción. In: CICERÓN. Sobre la república, op. cit., p. 22-23. Cícero menciona princeps em pouquíssimas ocasiões e, quando o faz, é em textos diversos daqueles apontados como determinantes para a matéria. Cf. CÍCERO. Planc. 93; Dom. sua 66; 110; Red. sen. 4; 5; 8; 26; Fam. I, 9, 11; Leg. III, 14; Fin. V, 11; Off. II, 77. E também Rep. I, 25; 34. Entre os autores posteriores, exemplo em SANTO AGOSTINHO. De civitate Dei V, 13 (“Etiam Tullius hinc dissimulare non potuit in eisdem libris quod de re publica scripsit, ubi loquitor de instituendo principe civitatis, quem dicit alendum esse gloria [...]”).695 CÍCERO. Qfr. III, 5, 1.696 GRENADE. Remarques sur la theorie ciceronienne dite du “principat”, op. cit., p. 42-43.697 ATKINS. Cicero on politics and the limits of reason, op. cit., p. 77-78. | 145 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOS“Por lo cual, si llegaras a perder la esperanza de vol-ver a este lugar en el que encuentran su plenitud los hombres grandes y eminentes, ¿de qué valdría, después de todo, esa fama humana que apenas pue-de llenar la mínima parte de un año? Así, si quieres mirar arriba y ver esta sede y mansión eterna, no confíes en lo que dice el vulgo, ni pongas la espe-ranza de tus acciones en los premios humanos; debe la misma virtud con sus atractivos conducir-te a la verdadera gloria. [...]” “Ahora yo, Africano, puesto que está abierto lo que llamaríamos acceso del Cielo a los beneméritos de la patria, aunque no os hice deshonor siguiendo desde joven las huellas de mi padre y tuyas, voy a esforzarme con mucha mayor diligencia a la vista de tan gran premio.” [...] “Ejercita tú el alma en lo mejor, y es lo mejor los desvelos por la salvación de la patria, movida y adiestrada por los cuales, el alma volará más veloz-mente a esta su sede y propia mansión [...].”698Haury699 descreve como gloria, fama e laus expressam o que hoje entendemos por notoriedade. Atribuída aos homens, não é privilégio deles700 e nem do ser humano. Definida no De inventione como “la reputación elogiosa y amplia de alguien”701, a glória é herança ou patrimônio familiar702 cuja conservação e crescimento exige um esforço contínuo703. A sua maior causa é a dedicação à res publica704, por meio, dentre outros, de feitos militares705 e da eloquência. Quando voltada ao interesse comum, pode ser considerada virtude706, mas se a simula, é condenável, como toda simulação 698 CÍCERO. Rep. VI, 25-26; 29. Cf. Sobre la república, op. cit., p. 168-170.699 HAURY, Auguste. Cicéron et la gloire: une pédagogie de la vertu. In: Mélanges de philosophie, de littérature et d’histoire ancienne offerts à Pierre Boyancé. Rome: École Française de Rome, 1974, p. 401-417. 700 VIRGÍLIO. Aeneis I, 378-379; II, 325-326.701 CICERO. De inv. II, 166. Cf. La invención retórica, op. cit., p. 304-305; Off. I, 84.702 CÍCERO. Flac. 25; Off. I, 121.703 CÍCERO. Off. I, 78.704 CÍCERO. Leg. Man. 6; Phil. I, 29.705 CÍCERO. Mur. 29; Arch. 24.706 CÍCERO. Off. II, 45 e 48; Tusc. I, 109; III, 3; Arch. 26; Phil. V, 35.146 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSe dissimulação707, assim como o seu excesso, pois pode levar à guerra civil708 e, pior, degenerar a alma709. Se esses desvios e perversões ocorriam, é porque sucesso fascina. A glória militar, com as vantagens e o prestígio do título de imperator, confere ao triunfante uma potentia710 que pode se transformar em potestas desmedida. Somente uma glória virtuosa, tal como no citado Sonho de Cipião, e por um toque grego711, assegura imortalidade à alma:Em boa verdade, logo quando do meu governo eu pensava difundir e disseminar a minha gover-nação, para eterna lembrança na terra. E quer tal lembrança venha a estar, após a morte, afastada do meu sentir, quer venha a pertencer, como julgaram homens sapientíssimos, a alguma parte do meu es-pírito, o certo é que já me deleito com um pensa-mento e uma esperança.712A virtude política, pela dedicação à res publica, leva o homem à única e verdadeira imortalidade, à imperecibilidade frente à fugacidade irresistível do tempo mundano. É a promessa dessa glória eterna que move o homem a se tornar um princeps. O estadista, então, usa a razão para aproximar a ordem política da ordem dos céus, isto é, como ordem justa, harmoniosa e racional713. Formula leis em conformidade com a reta razão, exigindo o 707 CÍCERO. Off. II, 43; III, 61. HAURY. Cicéron et la gloire, op. cit., p. 409-410. A glória é uma quimera para os epicuristas, enquanto para os estoicos, em geral, é indiferente. Vide Fin. III, 56-57.708 CÍCERO. Amic. 34. O que não significa que seja incompatível com a guerra civil, quando esta é uma luta pela liberdade, vide Phil. XIV, 34. Conferir JAL, P. Cicéron et la gloire en temps de guerre civile. Mnemosyne, fourth series, v. 16, fasc. 1, p. 43-56, 1963.709 CÍCERO. Fin. I, 59; Tusc. IV, 25.710 Ao contário da potestas, a potentia é um poder pessoal, ligado à situação de cada ator.,Por isso, a acusação de usurpação de potestas é descrita como potentia. Cf. HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 238-242. Cf. CÍCERO. Verr. II, 1, 40; Mil. 100; Verr. II, 4, 22; Clu. 153; Planc. 51; Fam. VII, 2, 2; Rab. Post. 16; Rep. II, 56. Sobre potentia paucorum, ver Fam. I, 9, 21. Sobre a natureza da potentia, De inv. II, 169. Ademais, Phil. I, 29; VII, 17; 127; Sest. 134; Pro Mil. 12; Rosc. Am. 55; 147.711 CÍCERO. Rep. I, 21; Tusc. I, 34; V, 66; 426. Fin. III, 56-57.712 CÍCERO. Arch. 30. Cf. Em defesa do poeta Árquias. Trad. Maria Isabel Rebelo Gonçalves. 2. ed. Lisboa: Inquérito, 1986, p. 49-51. 713 ATKINS. Cicero on politics and the limits of reason, op. cit., p. 78. | 147 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSmelhor de cada um e punindo o que é nocivo714. Como líder político virtuoso, o princeps é parâmetro para os cidadãos, exerce função de exemplo moral, portanto, de aprimoramento. A questão é que nem todos conseguem esse desenvolvimento efetivo. É possível entrever que o plano ótimo é a plena virtuosidade de todos os cidadãos, contudo, a res publica de Cícero é também constituição encravada na história, que considera o homem concreto e os desafios que a política impõe, de modo que é improvável que isso ocorra. Mas esse é um esforço contínuo, em direção ao aperfeiçoamento moral, que está fincado no desenvolvimento da razão e depende da vida coletiva. Os homens já virtuosos são os únicos capazes de ajudar os demais a também conquistarem a virtude, e devem fazê-lo por meio da política e do direito. Quando falham, não apenas no plano das instituições e das leis, mas na conduta pessoal e familiar, o vício contamina a todos que os têm por modelo. Por isso são tão perniciosos os erros dos optimates, mais do que os equívocos dos populares. Se são homens bons, não deveriam contribuir para replicar o vício. A auctoritas singular que possuem – e o passo de fé (fides) da sua observância – não podem ser abusadas para finalidades escusas. O rector ou princeps sabe aproveitar corretamente o encargo da autoridade, aplicando-a em favor de um processo de educação moral coletiva. A auctoritas não é poder vinculativo, mas valor impositivo. Portanto, longe de ser exemplo imóvel, o melhor homem político tem força de empuxo: age, fala, cria, faz mover, sem sacrificar a liberdade dos concidadãos. Estes participam do consenso nos comícios, aprovando ou não as propostas colocadas em pauta. Porém, demandam orientação. Esse é o exercício de libertas nos limites possíveis daqueles que estão em processo de educação. Da mesma forma o exercício de direitos políticos, proporcional segundo a capacidade de cada um. No futuro, outros se juntarão aos melhores homens políticos, compartilhando de sua condição. As restrições mencionadas não são eternas, estão abertas a quem se fizer capaz.Por isso, para Boyancé, o discurso sobre os optimates no Pro Sestio, citado anteriormente, é uma lição destinada aos homens novos715. Nesse discurso, Cícero prenunciava a necessidade de educação daqueles que assumirão os negócios públicos. O esboço do rector, no De re publica, deixará claro como 714 PAULSON, Lex. A Painted Republic: the constitutional innovations of Cicero’s De legibus. Etica & Politica, Trieste, v. XVI, n. 2, p. 307-340, 2014, p. 339.715 BOYANCÉ. Cum dignitate otium, op. cit., p. 176.148 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSpreparar essa formação, assim como antes pleitearam Platão e Aristóteles. O homem político ideal é o cidadão ideal, é o homem mais eminente da res publica, o optimus civis, que é praestans vir716.Como afirmamos insistentemente em vários momentos, esse homem de bem, na condução da res publica, tem por missão assegurar a estabilidade da constituição. Uma vez que esta tem por valor supremo a liberdade, precisamos tecer algumas observações sobre essa relação. Anteriormente também tivemos a oportunidade de sinalizar que a libertas assume contornos distintos entre optimates e populares. Em vista disso, alguns autores717 tendem a afirmar a liberdade em Roma como noção vaga. Cremos, contudo, que o uso costuma ser, inversamente, bastante específico, conquanto variado e mesmo contraditórias. Uma delas é a noção jurídica de liberdade, da qual Cícero foi um grande expoente718. Nas origens de Roma, libertas definia o estatuto jurídico do homem – e do povo romano719 – que não é escravo, alheio a domínio, em contraste com a liberdade dos gregos720. No plano da persona sui iuris, reflete na relação entre o pater familias e os seus liberi, no contrato de nexum e outros laços jurídicos721. 716 CÍCERO. Qfr. III, 5, 1; BOYANCÉ. Cum dignitate otium, op. cit., p. 177. 717 Vide SYME. The Roman Revolution, op. cit., p. 155.718 STE. CROIX, G. E. M. de. The class struggle in the Ancient Greek World: from the Archaic Age to the Arab Conquests. Ithaca: Cornell University Press, 1989, p. 368.719 CÍCERO. Phil. III, 29; X, 19; XI, 24; Rep. I, 68; Sest. 118; Scaur. 38. Ver WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate, op. cit., p. 1. Além da passagem abaixo referenciada do Digesta, o instituto jurídico da escravidão é definido também em JUSTINIANO. Institutiones I, 3; GAIO. Institutiones I, 9-12; 48-52. Sobre a condição jurídica do escravo, a partir do direito romano do Principado e do Império, ver BUCKLAND, W. W. The Roman Law of Slavery: the condition of the slave in the private law from Augustus to Justinian. Cambridge: Cambridge University Press, 1908.720 FLORENTINO. Digesta I, 5, 4. Cf. Cuerpo del Derecho Civil Romano: Instituta-Digesto. Trad. D. Ildefonso L. García Del Corral. Barcelona: Kriegel, Hermann y Osenbrüggen, 1889, t. I, p. 213: “Libertad es la natural facultad [libertas est naturalis facultas] de hacer lo que place a cada cual, salvo si algo se prohíbe por la fuerza, o por la ley. §1: La esclavitud [servitus] es una constitución del derecho de gentes, por la que alguno está sujeto contra la naturaleza [contra naturam] al dominio ageno.” Tanto a libertas romana quanto a eleutheria grega significavam, em conceito e na prática, coisas diversas, apesar da suposição de terem a mesma raiz indo-europeia – leudheros. De toda forma, libertas é dita primariamente como oposto à servidão juridicamente instituída. A concepção grega, aos olhos romanos, é ilustrada por Cícero em Parad. stoic. 34-35 e em Rep. III, 23. Cf. BRUNT. The fall of the Roman Republic and related essays, op. cit., p. 282-283; 721 BRUNT. The fall of the Roman Republic and related essays, op. cit., p. 283-291, para todo o parágrafo. Na p. 289. Sobre o nexum, ver MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito | 149 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSNo plano da res publica, significa ausência de sujeição de um povo ao dominium de um senhor, mas também direitos fundados em instituições positivas722. Portanto, livre é aquele que pertence ao populus e à cidadania romana, gozando dos direitos decorrentes dessa condição723. Cícero é enfático ao afirmar que não há res publica onde não há libertas724, e res publica é res populi725. Nela, o homem desvencilha-se de despotismos intestinos, preservando a integridade e a autonomia na condução da res publica, conquista sempre em andamento e ampliação, através da busca do consenso coletivo. Por isso, a eloquência floresce em “todo povo livre” (in omni libero populo)726: é a marca de uma res publica que goza de liberdade tomar decisões mediante discussões públicas, como Roma727. Compreensível que seja tão doce: O nomen dulce libertatis! O ius eximium nostrae civitatis!728A garantia da liberdade ocorre por meio do direito: como ius, particularizado nos direitos gozados pelo cidadão, como iura libertatis729, de modo que a libertas é aequitas iuris730; como lex, autonomia dos romanos em face de interferências externas731;,e como imperium, mecanismo de afastamento de ameaças externas internas732; também encarna em certas garantias protetivas733. O que importa manter em vista é que nenhum interesse Romano. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 478-479.722 WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate, op. cit., p. 5. CÍCERO. Flac. 25.723 CÍCERO. Balb. 24; 31.724 CÍCERO. Phil. IV, 2; V, 46; Fam. XII, 2, 1; Att. XIV, 4, 1.725 CÍCERO. Planc. 11. Cf. Le orazioni. A cura di Giovanni Bellardi. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1975, v. III, p. 848-849: “‘Il populo ha giudicato male’. Ma ha giudicato. ‘Non avrebbe dovuto’. Ma l’ha potuto.”; Leg. agr. II, 16 e 17.726 CÍCERO. De or. I, 30. Cf. SCATOLIN. A invenção no Do orador de Cícero, op. cit., p. 152.727 BRUNT. The fall of the Roman Republic and related essays, op. cit., p. 291-296. Rab. Post. 22; Phil. VI, 19; Verr. II, 5, 164.728 Ibidem, p. 296-298. A frase final é de CÍCERO. Verr. II, 5, 163.729 CÍCERO. Brut. 227; Leg. III, 6; 19; 42; Dom. 22; 80; Verr. II, 5, 143.730 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 546-547. CÍCERO. Planc. 33.731 Ibidem, p. 547-548. Cf. CICERO. Rab. Perd. 10; Off. III, 83; Phil. VIII, 8; XIII, 1; Leg. agr. II, 102; Clu. 146.732 Ibidem, p. 548. Phil. V, 37; XIV, 8; Cat. IV, 24.733 PAULSON. A Painted Republic: the constitutional innovations of Cicero’s De legibus, op. cit., p. 336-337; WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate, op. cit., p. 24. Exemplos em CÍCERO. Dom. 43; 47; 77; 150 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSseccionado pode dominar a res publica734. A libertas sem moderação degenera-se em licentia, pelo que a verdadeira libertas não é o poder de fazer o que se quer, mas aquilo que a lei determina ou não veda735. A liberdade romana não é sem limites736. Não fossem as restrições da lei, não haveria gozo pleno de liberdade, mas autodestruição pelo excesso:[...] es mucho más indignante que en una ciudad que está regida por leyes alguien se aparte de las leyes. Porque ellas son el vínculo de esta dignidad de que gozamos en la república, ellas el fundamen-to de la libertad, ellas la fuente de la justicia; el alma, el espíritu, la sabiduría y el pensamiento de la ciudad radican en las leyes. Lo mismo que nues-tros cuerpos sin la inteligencia, así la ciudad sin la ley no puede servirse de sus elementos, que son como sus nervios, su sangre y sus miembros. Servi-dores de las leyes son los magistrados, intérpretes de las leyes los jueces; todos, en fin, somos siervos de las leyes para poder ser libres [legum denique id-circo omnes servi sumus ut liberi esse possimus]737.A limitação jurídica da liberdade não significa necessária ou primariamente autorrestrição, tal como a sophrosyne grega, e longe de ser “autonomia da vontade”, é um dever correlato a um direito: se existe o direito de reclamar o que é devido para si, existe também o dever de respeitar o que é devido a outros, afastando a violência:Además, entre esta vida civilizada por la cultura y aquella salvaje, la diferencia más importante radica en el derecho y la violencia. Si no queremos usar el Leg. I, 42; III, 6; 9; Verr. II, 2, 33; 5, 163; Rep. II, 53-54; III, 44; Leg. agr. II, 15.734 WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate, op. cit., p. 80-82. Ver Off. I, 85.735 Ibid., p. 7-8; CÍCERO. Flac. 16; Planc. 94. Tácito dirá que são os tolos que identificam libertas com licentia (licentia quam stulti libertatem vocitant), em Dialogus de oratoribus 40.736 Ibidem, p. 548. CÍCERO. Dom. 33; Mil. 7; Phil. I, 4; II, 116; III, 29; V, 12; Off. II, 24; III, 36; Parad. stoic. 11.737 CÍCERO. Clu. 146. Cf. Discursos V, op. cit., p. 252. Ver PLATÃO. Carta VII 334c. | 151 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSuno, habrá que usar la otra. Queremos eliminar la violencia: necesariamente ha de prevalecer el de-recho, es decir, los tribunales en los que se contie-ne todo el derecho. Se desprecian los tribunales o no existen: necesariamente prevalecerá la fuerza. [...].738A congregação de homens, lastreada no direito e no consenso, é imprescindível para o desenvolvimento da natureza humana, mas a busca pelo bem depende deles próprios, sendo a comunidade mera condição para tanto739. Seu principal caminho, para os gregos, era a política. Os romanos adicionam também o direito. A liberdade assegura possibilidades de ação, porém, viver segundo puros desígnios pessoais é uma concepção grega rejeitada pelos romanos, assim descrita por Cícero:O que é então a liberdade? A capacidade de se viver como se deseja. E quem é que vive como deseja se-não o homem que segue a via da rectidão, que sente prazer no cumprimento dos deveres, que vive se-gundo um plano bem estudado e arquitectado, que não obedece às leis por medo, mas as cumpre e res-peita por estar convicto de que tal é o melhor com-portamento possível, que nada fiz, faz ou sequer pensa sem vontade ou constrangido, cujas decisões e cujos actos são única e exclusivamente derivados do seu querer e só a si mesmo prestam contas, em suma, um homem tal que não se sujeita a um poder mais alto do que a sua vontade e a sua capacidade de julgar. Diante de tal homem até a Fortuna cede o passo, ela, a quem o vulgo atribui o máximo poder, se é verdade o que diz uma sábio poeta, que “cada um constrói para si a fortuna adequada ao seu ca-rácter”. Ora apenas ao sábio é dada a faculdade de 738 CÍCERO. Sest. 92. Cf. Discursos IV, op. cit., p. 346-347. Ver ainda Mil. 77.739 BRUNT. The fall of the Roman Republic and related essays, op. cit., p. 308.152 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSnada fazer contra vontade, com sofrimento, sob coacção.740Somente o sábio é efetivamente livre, segundo os estoicos, enquanto todo insensato é escravo. No entanto, Cícero rejeita as exigências extremas da sapiência estoica. O homem ciceroniano é o homem da res publica e que nela busca desenvolver a sua natureza, ou seja, inserido no meio social, tem no direito a coercibilidade e a irresistibilidade que submetem a vontade atual741. Ademais, existem deveres morais que são, simultaneamente, deveres sociais, ou seja, têm em vista o agir interior, que se volta para os demais congregados. A liberdade de fazer o que se deseja, sem amarras externas, é a visão do sedento de poder, como alguns populares742, ou daqueles que gozaram exclusivamente do ócio, pois “é mais frutuosa para o género humano, assim mais contribuindo para a sua notoriedade, a vida daqueles que se dedicaram à república e à realização de grandes obras”743.Cícero, no De lege agraria, defende a libertas como cônsul744. Já na sétima Philippica, é o Senado que defende a libertas745. Portanto, todos os componentes da constituição mista empenham-se na promoção da liberdade, essência do povo romano746, enquanto liberdade na proporção da dignidade, pois, se a liberdade não é justa, não há efetiva libertas (si aequa non est ne libertas quidem est)747. Todos serem igualmente livres significaria igualitarismo completo748 e, com isso, governo injusto do povo. No entanto, a igualdade permanece como 740 CICERO. Parad. stoic. V, 34. Cf. Textos filosóficos, op. cit., p. 22. A liberdade democrática grega em Flac. 16; 71.741 SALGADO. A ideia de justiça no mundo contemporâneo, op. cit., p. 67 et seq.742 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 556-557. Vide Leg. agr. II, 15; 71; 76-77; 81; Sest. 103; 105; 137; Mur. 73.743 CICERO. Off. I, 70. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 40. Ver também Planc. 16; Sull. 48; Flac. 25.744 CÍCERO. Leg. agr. II, 7-9.745 IACOBONNI. Le sens de la libertas au sein du mos maiorum chez Ciceron, op. cit. Cf. Phil.,VII, 7; 27.746 HELLEGOUARC’H. Le vocabulaire latin des relations et des partis politique sous la République, op. cit., p. 551. Cf. Phil. II, 27; III, 29; 36; VI, 19 ; X, 19-20; Leg. agr. II, 9; Flac. 91; Rab. Post. 22; 24; Deiot. 34.747 CÍCERO. Rep. I, 47.748 CÍCERO. Rep. I, 43; 53. | 153 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSpressuposto essencial da aequa libertas, enquanto igualdade perante a lei749, concidadãos com direitos iguais750, commune ius751, sendo inimigo da communi libertatis quem violar o direito do cidadão752. O entrelaçamento de igualdade e liberdade na estrutura político-jurídica, para pôr o equilíbrio ciceroniano em conformidade com a natureza, exige associar libertas e auctoritas753, liberdade refreada na sede de injusta igualdade extrema, como liberdade limitada que não vai de encontro com a supremacia dos optimi cives, mas a reforça754. Se não é exequível satisfazer o desejo por liberdade dando ao povo apenas pouco poder, isso não implica o governo pelo próprio povo, pois não se pode abrir mão da auctoritas e da dignitas755. Na conexão entre liberdade, cidadão e constituição, em Cícero, no empenho de condução da vida coletiva, a libertas somente é possível sob a forma de res publica, a melhor constituição que, com sua configuração justa, a respeitar as igualdades e as diferenças, traduzidas em direitos e em instituições, abarca as complexidades do mundo social e abre caminho para o desenvolvimento da natureza humana.749 CÍCERO. Off. II, 85.750 CÍCERO. Off. I, 124. Cf. Dos deveres, op. cit., p. 60: “O cidadão particular deve gozar de direitos iguais aos dos seus concidadãos, sem precisar de perante estes se humilhar ou necessitar de se evidenciar [...]”.751 CÍCERO. Off. I, 53. WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate, op. cit., p. 9-13, para todo o parágrafo. Ver Top. 9; Off. II, 41.752 CÍCERO. Verr. II, 5, 169.753 Vide CÍCERO. Phil. IV, 5.754 IACOBONNI. Le sens de la libertas au sein du mos maiorum chez Ciceron, op. cit.755 BRUNT. The fall of the Roman Republic and related essays, op. cit., p. 312; CÍCERO. Rep. II, 50; Leg. agr. II, 29; WIRSZUBSKI. Libertas as a political idea at Rome during the Late Republic and Early Principate, op. cit., p. 14.154 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSCAPÍTULO 3A IDEIA CICERONIANA DE RES PUBLICAApós um longo percurso, iniciado com as discussões sobre as formas de governo e desaguando no princeps e na libertas, podemos começar a responder, enfim, o que é a ideia de res publica em Cícero. Retomemos a definição do De re publica:A república é coisa do povo, mas povo não é todo conjunto de homens reunidos de qualquer manei-ra, mas a multidão associada pelo consenso de di-reito e pela utilidade comum [res publica res populi, populus autem non omnis hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris con-sensu et utilitatis communione sociatus].756Essa passagem é objeto de diferentes interpretações que disputam o melhor sentido para cada um de seus elementos, como res, populus, iuris consenso e utilitatis communione. Essas expressões não eram incomuns na Roma republicana, o que nos leva a enfrentá-las em detalhes, embora já tenhamos tangenciado algumas.No concernente a res publica, recordemos o seu sentido genérico de constituição, governo, por vezes, como sinônimo de civitas. É a coisa pública, propriedade ou negócio, que, sendo res populi, pertence ao povo. Segundo Kunkel757, os romanos chamaram-na com o seu próprio nome porque não a concebiam abstraída do coletivo de cidadãos. Mas, para Wood758, Cícero tentou conceber uma tal noção mais abstrata. De fato, os contrastes jurídicos então vigentes entre res publica e res privatae fazem englobar, na definição, a propriedade pública, a exemplo do ager publicus759. Assim, res é “propriedade” 756 CÍCERO. Rep. I, 39 (tradução nossa cotejada com Sobre la república, op. cit., p. 62-63).757 KUNKEL, Wolfgang. Historia del Derecho Romano. Trad. Juan Miquel. 3. ed. Barcelona: Ariel, 1972, p. 16-17.758 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 125.759 Sobre coisas públicas e privadas, GAIO. Institutiones II, 10-11; JUSTINIANO. Institutiones II, 1, 2-7. Sobre a posse de bens públicos, ver NÓBREGA. Vandick Londres | 155 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSporque é domínio pelos cidadãos e, Roma, coisa passível de ser apropriada. Segundo Crosara, a res publica é propriedade do povo, pública total, indefinível e ilimitada760, mas para Schofield, res populi é “negócios e interesses do povo”761, sendo propriedade uma metáfora762: o populus não tem liberdade se sua res é apossada por um tirano ou uma factio, de modo que o próprio populus pertence a alguém763. Com essa metáfora, Cícero expressaria, então, que, da propriedade da res, decorrem direitos de administração e uso, cujo exercício é a liberdade política764.Essas interpretações são interessantes, entretanto, padecem de graves equívocos. Cremos que a mencionada comparação de Schofield precisa ser afastada do véu de metáfora e dosada corretamente com o peso do direito romano privado na estruturação do direito público. Ainda que a equiparação de res publica a res populi possa até ser uma inovação de Cícero, antes dele já existiam as expressões separadas, com conceitos correntes. No caso, a res é pública, isto é, comum, referente a uma civitas e dela constituinte. Publica e populi não se equiparam, pois seria redundante, sendo populus um conceito precipuamente jurídico, como vimos, uma das figuras centrais da constituição mista à qual é atribuída a libertas e um poder específico, a potestas, e assim deve ser interpretado na expressão. Logo, o populus exerce a potestas sobre a res, decide sobre ela765. A res, nas origens do instituto da propriedade, no direito romano, submetia-se ao poder ilimitado do titular766. Embora essas prerrogativas tenham sido restringidas ao longo da história, da. História e Sistema do Direito Privado Romano. 3. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, p. 215. Sobre o ager publicus, ver ROSELAAR, Saskia T. Public land in the Roman Republic. Oxford: Oxford University Press, 2010.760 CROSARA, Fulvio. Concetto e ideale dello Stato in termine Respublica secondo Cicerone. Ciceroniana, Roma, v. 1, n. 2, p. 83-105, 1959, p. 95.761 Vide CÍCERO. Rep. III, 43-45.762 SCHOFIELD. Cicero’s definition of res publica, op. cit., p. 75.763 CÍCERO. Rep. III, 43-44.764 SCHOFIELD. Cicero’s definition of res publica, op. cit., p. 76; 82. Alguns magistrados teriam pensado na res publica como sua propriedade. Cf. GELZER. The Roman Nobility, op. cit., p. 136-137. CÍCERO. Rosc. Am. 141.765 Nesse sentido, HODGSON, Louise. Res publica and the Roman republic: “without body or form”. Oxford: Oxford University Press, 2017, que veremos adiante.766 JUSTINIANO. Institutiones II, 4, 4 (plenam habere in re potestatem); GAIO. Institutiones II, 40. Sobre a história da propriedade no direito romano e suas limitações, ver GIRARD, Paul Frédéric. Manuel élémentaire de droit romain. 4. ed. Paris: Arthur Rousseau, 1906, p. 253 et seq.156 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSuma áurea de poder quase absoluto (plena in re potesta) ainda permeava a mundivisão do tempo de Cícero, como uti, frui e abuti, repercutindo na esfera política767. Ora, a potestas populi tem preeminência frente ao poder privado768, todavia, na melhor constituição ciceroniana, o populus exerce amplo poder sobre a sua res, mas submetido sim a limitações de execução. Ele depende de tutores, como os magistrados com imperium, munidos de instrumentos de transformação da realidade. Logo, para Cícero, muito menos há cidadãos que exerçam real poder absoluto sobre Roma, pois sequer Júlio César foi capaz de se desvencilhar de todas as instituições e de todo o direito vigente769. É em vista,disso que outros intérpretes também problematizam res publica. Para D’Ors, res não é coisa em sentido jurídico, como bens patrimoniais de uso público, mas no sentido amplo de gestão, povo enquanto objeto do governo do povo770. Para Nicolet, res tem sentido simultaneamente abstrato e concreto: são os bens e os interesses comuns de todos os cidadãos, a começar pela garantia de uma constituição que promova a natureza moral do homem, por meio da proteção da comunidade, das pessoas e da propriedade771, inclusive assegurando bens comuns: “o antigo ‘querer viver em conjunto’ era sobretudo um ‘querer viver melhor’, num equilíbrio tranquilo”772. Com isso, res publica deve abranger também um sentido “afetivo”, como aquilo que o povo cuida ou possuir em comum, tais como leis, instituições e valores, estruturantes de uma constituição, meios pelos quais o povo cuida de si773. Como afirma 767 O poder absoluto de vitae necisque do pater familias sobre seus dependentes (CÍCERO. Dom. 77), vai perdendo rigidez, tal como sentido em Fin. I, 23. Ver COSTA. Cicerone Giureconsulto, v. I, op. cit., p. 45 et seq; 91 et seq. 768 CÍCERO. De inv. II, 52: patria potestas, como poder privado, submete-se à potestas do populus.769 Ferrary lista diversas posições acerca da definição de res publica de Cícero, que atribuem-na à influência estoica, peripatética ou acadêmica. Cf. FERRARY, Jean-Louis. Le discours de Laelius dans le troisième livre du De re publica de Cicéron. Mélanges de l’École française de Rome. Antiquité, t. 86, n. 2, p. 745-771, 1974, p. 745-746. Ver Rep. I, 36; II, 22; Leg. III, 13-16; Div. II, 1, 3.770 D’ORS. Introducción. In: CÍCERO. Sobre la república, op. cit., p. 20.771 CÍCERO. Off. II, 73.772 NICOLET. O cidadão e o político, op. cit., p. 25-26.773 MÁRQUEZ, Xavier. Between urbs and orbis: Cicero’s conception of the political community. In: NICGORSKI, Walter (ed.). Cicero’s practical philosophy. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2012, p. 192. | 157 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSKupiszewski, a res publica ciceroniana “não é tanto um mecanismo quanto um organismo vivo e fundado sobre algumas regras claramente identificáveis”774.Em detalhado estudo, Hodgson alega que a res publica, em Roma, não se confunde com o tipo específico de sistema político, pois servia para designar outras constituições diversas da romana, nem indica a identidade física ou corpórea de Roma, isto é, a urbs, que se distingue de civitas, como unidade político-cultural775. A res publica são os negócios cívicos e a propriedade para os quais a civitas era organizada para cuidar. Na monarquia, o responsável era o rei – existia res publica, mas ela não se identificava nem com o governante nem com o sistema de governo. Logo, a res publica é algo que deve ser administrado para o bem público, mas não necessariamente ser gerida pelo público. Em suma, ela pode ser entendida tanto como negócios cívicos que devem ser geridos quanto como esfera de ação na qual se movem os atores políticos: Por um lado, a res publica é a propriedade/negócios comunalmente possuídos que deve ser administra-da. Por outro lado, é claro por nossos textos que esta não era a única maneira de se relacionar com a res publica: não só é in re publica um termo idiomático comum significando “nos assuntos públicos”, como os políticos jovens dizem entrar “na vida pública” (ad rem publicam). Oposto a isso é a retirada cons-ciente da vida pública, a republica, uma frase muito mais rara. Esses termos transmitem uma sensação de espaço ou movimento metafórico: dentro, em meio a ou fora de. Do ponto de vista do iniciado po-lítico, a res publica é o espaço comunal no qual os interessados na administração dos assuntos cívicos se movem e, portanto, significa algo mais próximo de “o espaço político interno (por mais que seja or-ganizado) de uma dada comunidade cívica”. [...] a diferença crucial aqui é entre res publica como ne-774 KUPISZEWSKI. La nozione di stato nel De republica di Cicerone, op. cit., p. 196 (tradução nossa).775 HODGSON. Res publica and the Roman republic: “without body or form”, op. cit., p. 3-4.158 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSgócio cívico (que deve ser gerenciado) e res publica como uma esfera de ação (dentro do qual os atores políticos se movem). Res publica pode ser melhor expressa como um campo de posições que muda de significado dependendo de onde uma pessoa está no espaço sociopolítico [...].776A interpretação de Hodgson é instigante como reflexão sobre a dinâmica da estrutura política, normalmente examinada em prisma estático. No entanto, mesmo diante desses méritos, no esforço de encontrar uma res publica propriamente ciceroniana, não podemos nos contentar apenas com esse campo de ação política proposto777, até porque a autora derrapa ao crer inexistir, no De re publica, um conceito articulado de res publica, por Cipião negar ter intenção de definições778 e pelo público de homens políticos já saberem o seu significado. De fato, Cícero não é preciso na relação de res publica com res populi, mas, com isso, reflete o ideário vigente e a aversão romana a conceitos objetivos à moda grega. Ainda assim, a atitude ciceroniana pode ser menos imprecisa do que à primeira vista. Caminhando com a própria Hodgson, vemos que populus é o corpo cívico e, portanto, a própria civitas, e não há res publica sem populus, sem um corpo de cidadãos, que são os constituintes da cidade. Roma é a res publica do populus Romanus e surge, concomitantemente, como os negócios e propriedades de uma dada civitas e os espaços comunais de atuação dos seus administradores. Talvez não seja possível identificar um conceito único com carga ideológica constante o suficiente para ser apontado como o verdadeiro sentido de res publica. Contudo, em Cícero, seja ao se referir a Roma em um certo momento histórico, seja genericamente à forma de governo, a res publica é uma unidade ética que não tem mero significado histórico transitório, mas pretensão de universalidade como conceito filosófico, que se insere dentro de um projeto político-jurídico.Considerando esse “espaço cívico”, vale agregar a advertência de Nicolet de que as interpretações contemporâneas que tendem a ver Roma por 776 Ibid., p. 4-6 (tradução nossa).777 Ibid., p. 6 et seq (daqui em diante).778 CÍCERO. Rep. I, 38. | 159 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSum olhar de totalitarismo ou de democracia se equivocam quanto à natureza das relações ali envolvidas. Ela é uma comunidade que exige muito, mas não a ponto de sacrificar o cidadão ou, inversamente, de pleitear a democracia779. Cumpre entender que Cícero preocupa-se em identificar o que faz um governo ser legítimo e toma como premissa inicial a liberdade do povo para conduzir seus próprios interesses, ainda que mediada, crendo que, caso contrário, não haverá verdadeira res publica780. Essa liberdade é exercida via ordens sociais, meios pelos quais a civitas vive e age como agregação política781. Isso significa convívio, por vezes tempestuoso, entre nobilitas e plebe não enobrecida, entre senadores e cavaleiros, entre diversos tipos de cidadãos. Daí a necessidade de concordia para assegurar unidade ao populus.Como bem assevera Grilli782, em Cícero, a res publica é uma congregatio e, como tal, opõe-se ao homem solitário (solivagus)783. A congregação política, distinta das uniões animais, culmina na res publica, expressão acabada da humanitas, daquilo que é próprio do humano. No De inventione, ao tratar do nascimento da sociedade, Cícero não enxerga ainda um populus, mas, na conclusão, sinaliza premissas da res publica, como urbes e civitates784. O populus, portanto, não origina a res publica, inversamente, é a união dos homens em uma res publica que gera um populus, como expressão juridicamente organizada da vontade dos cidadãos para a formação do consensus,,indispensável na melhor constituição. Ademais, além de originar e conferir legitimidade ao populus, a congregatio impõe-lhe limites, a fim de evitar a degeneração em turba movida pela licentia785. É por isso que Múmio afirma ser melhor um monarca que um povo selvagem786. Mas o populus, se moderado, pode concretizar a verdadeira res publica, pois esta é res populi. Inexiste circularidade: o populus é originado pela res publica e, ao mesmo 779 NICOLET. O cidadão e o político, op. cit., p. 27.780 SCHOFIELD. Cicero’s definition of res publica, op. cit., p. 76.781 COSTA. Cicerone Giureconsulto, v. I, op. cit., p. 254. CÍCERO. Sest. 91; Leg. agr. I, 6; 19; II, 3; 8; 32; Pis. 15; Phil. X, 14.782 GRILLI, Alberto. Populus in Cicerone. In: URSO (a cura di). Popolo e potere nel mondo antico, op. cit., p. 123-139.783 CÍCERO. Rep. I, 39; Tusc. V, 38; Off. I, 157.784 CÍCERO. De inv. I, 2. Também uma descrição sobre a origem da sociedade humana em Sest. 42; 91-92.785 CÍCERO. Rep. I, 43-44; 69; III, 23; 45.786 CÍCERO. Rep. III, 46.160 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOStempo, é condição de existência da melhor constituição. Outrossim, não há verdadeiro populus sem uma civitas correspondente, isto é, uma agregação de homens com condição cultural, política e axiológica que lhe dê identidade e suporte. Nisso reside uma diferença em relação à polis grega: ao contrário dela, a civitas romana não é o ponto de partida do qual é deduzida a condição daquele que pertence a ela, ao contrário, é o conjunto de pessoas (cives) que compõem o povo (populus)787. Por isso, a civitas pode permanecer mesmo quando já não há res publica788, tendo em vista que esta é formada na harmonia entre utilidade geral e utilidade particular789.Como observa D’Ors, a verdadeira res publica não existe apenas quando perfeito o governo. São possíveis muitas constituições, “cuja perfeição não é absoluta, mas relativa a cada povo e cada momento histórico”790. Logo, é perfeição, mas segundo a configuração de cada povo e tempo. A res publica perfeita de Cícero é perfeita para o povo romano, desenvolvida em sua história, sempre enfatizando a unidade, enquanto coetus multitudinis, união harmônica, na concordia de suas partes, que pressupõe iuris consensu e utilitatis communione791. Com efeito, há populus quando existe um direito comum. Para D’Ors, iuris consensus é direito comungado, do qual todos podem se servir, disponibilidade de direito, utilitas, aquilo que se presta a ser usado, não significando um ideal consensualista792. Cremos, entretanto, que o direito é sim produto de consensus, como acordo de direitos e da comunidade dos interesses dos cidadãos793: a lex é aprovada pelo populus reunido em comício, por aquiescência à proposta do magistrado; o costume é fruto de consensus temporal, via prática reiterada de certos atos pelos cidadãos, creditados como obrigatórios, desde os maiores, conforme os caminhos que o populus 787 D’ORS. Introducción. In: CÍCERO. Sobre la república, op. cit., p. 18.788 CÍCERO. Rep. III, 43; MÁRQUEZ. Between urbs and orbis, op. cit., p. 193.789 KUPISZEWSKI. La nozione di stato nel De republica di Cicerone, op. cit., p. 198.790 D’ORS. Introducción. In: CÍCERO. Sobre la república, op. cit., p. 22 (tradução nossa).791 ASMIS. A new kind of model: Cicero’s Roman constitution in De Republica, op. cit., p. 400-401. Cícero escreve coetus multitudinis, e não omnis hominum coetus, o que para Kupiszewski buscou excluir os servos como sujeitos. Cf. KUPISZEWSKI. La nozione di stato nel De republica di Cicerone, op. cit., p. 196.792 D’ORS. Introducción. In: CÍCERO. Sobre la república, op. cit., p. 20.793 WOLODKIEWICZ, Witold. Stato e dirito nel De legibus. Ciceroniana, v. 7 (Atti del VII Colloquium Tullianum - Varsavia, 11-14 maggio 1989), p. 249-262, 1990, p. 75-82. | 161 A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSvai tomando para a garantia de sua liberdade. Subjacente ao consenso, como pressuposto e condição viabilizadora, estão fatores como a amicitiae, a clientela e a religião cívica794, além do mos maiorum, portanto, o todo o arcabouço cultural, alinhado ao elemento organizativo ou estrutural (coetus multitudinis sociatus) e, então, acoplado ao elemento volitivo (iuris consensus)795. Então, temos o direito como dotado de uma dimensão consensual porque formado a partir de normas comuns em torno das quais um aglomerado de homens se reúne, originando o povo, ou seja, o populus surge em razão de um acordo social concernente ao justo. Outro motivo para o governo da multidão ser uma tirania é porque sob o jugo da turba não é possível consenso, pois destruído qualquer senso de justiça796. Assim, o direito oferece a possibilidade de comunidade797. A partir dele o populus deixa de ser meramente social para tornar-se político-jurídico, capaz de obter o consenso e produzir as regras de convívio, voltadas à utilidade comum, em especial, a preservação da estabilidade e da unidade, enfim, constitui uma res publica. Por isso, rejeita-se qualquer administração que não tenha em mira o povo798:Si en esto obrasteis a la ligera y no atendisteis de-bidamente los intereses de la república, entonces tienen razón al pretender regular vuestras simpa-tías con sus consejos [suis consiliis]. Pero, si sois vosotros los que en aquel momento tuvisteis más clarividencia política, si vosotros solos, a pesar de su oposición, contribuisteis a la dignidad de nues-tro imperio y a la paz del universo, hora es ya de que reconozcan esos príncipes [isti principes] que, tanto ellos como los demás, deben someterse a la 794 WOOD. Cicero’s social and political thought, op. cit., p. 171-172. CÍCERO. Rep. II, 16-17; 26-27; Leg. II, 21; 26; 30-33; 36; 69; Nat. D. II, 60-72; III, 5-6; Div. II, 28; 43; 70; 148.795 CROSARA. Concetto e ideale dello Stato in termine Respublica secondo Cicerone, op. cit., p. 94.796 SCHOFIELD. Cicero’s definition of res publica, op. cit., p. 71-72.797 KASTELY, Amy H. Cicero’s De legibus: law and talking justly toward a just commu-nity. Yale Journal of Law & the Humanities, v. 3, issue 1, p. 1-31, 1991, p. 14; CÍCERO. Rep. I, 27-32; 65; Leg. I, 62; III, 40-42; 47.798 SCHOFIELD. Cicero’s definition of res publica, op. cit., p. 74.162 | A RES PUBLICA ENTRE A IDEIA E A HISTÓRIA | IGOR MORAES SANTOSautoridad de todo un pueblo romano [populi Roma-ni universi auctoritati].799Nessa passagem, Cícero usa termos próprios ao Senado (consulo, consilium, auctoritas), aplicando-os ao populus. Ele caracteriza sua audiência, o populus Romanus, como corpo decisório capaz de tomar ação política contra os desejos da elite. No entanto, mesmo querendo agradar à plateia, as características excepcionais atribuídas ao populus não incluem a administração direta da res publica800. Esse fato não exclui a importância de suas incumbências, que são por ele desempenhadas melhor do que qualquer outro. O ponto é que isso não vale para todos os encargos. Por exemplo, o povo não é o mais apto a propor as leis ou executá-las, elegendo pessoas qualificadas para tanto. Quem fará a propositura e a execução serão cidadãos, integrantes do corpo cívico, eleitos pelo próprio corpo. Esses mesmos cidadãos, como magistrados e ex-magistrados, farão parte do Senado, o conselho dos homens qualificados, por sabedoria e antiguidade, atestados pelo próprio populus quando os elegeram. O Senado tem outras atribuições, diversas daquelas do povo reunido em comício e dos magistrados, que lhe cumpre por serem de alta gravidade para a vida comum. Como difundido entre os antigos, quanto maior a seriedade dos assuntos, mais necessário é que sejam cuidados por alguém sábio e experiente. É aí que entra o consilium como noção chave da auctoritas do Senado: ele tem em vista a utilitas, uma das dimensões componentes da justiça possível aos homens no seu esforço sempre limitado de harmonização com a reta razão. Isso já é um fator diferenciador
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